quarta-feira, 2 de abril de 2014

Princípio do nível elevado de proteção ambiental

Primeiramente, antes de passar ao estudo do princípio do nível elevado de proteção do ambiente (também conhecido por NEPE), cumpre fazer as seguintes advertências:
- O tema que irei explorar, tem como base de estudo a tese de doutoramento da Professora Alexandra Aragão,“ O Princípio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos”. Não obstante, o objeto de estudo, centrar-se-á na análise da aplicação prática do princípio, em casos concretos. Assim sendo, com o estudo do NEPE, pretendo dar resposta as seguintes questões:
1)      Qual o papel do NEPE na proteção ambiental?
2)      Como saber qual o nível mais elevado de proteção? Quais os critérios utilizados?
3)      Estará a ser devidamente cumprido o nível de proteção elevada, em matéria ambiental?

Enquadramento Histórico
O Tratado de Maastricht, assinado em 1992, consagrou a par de outros princípios de cariz ambiental, o princípio do nível elevado de proteção, no artigo 130º - R nº2, preceituando o seguinte: “ a política da Comunidade no domínio do ambiente visará um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da Comunidade” [1]. É a partir deste momento, que os Estados Membros deixaram de puder dispor daquilo que consideravam ser o nível mais adequado de proteção, uma vez que a liberdade de que gozavam causava grave desequilíbrios em torno da política ambiental[2]. Tome-se o exemplo, do Estados do Norte da Europa, seguindo uma política ambiental mais rigorosa, em detrimento dos países do Sul para quem o ambiente ainda era concebido como um bem de “luxo” e cujas atenções se centravam nos problemas económicos e sociais. De outrora, com a revisão do Tratado, em 1997, acentuou-se o papel do NEPE, sendo este atualmente um objetivo central da política ambiental da Comunidade. Além desta alteração a somar em muito contribui a introdução das deliberações por maioria[3], pois até essa data era exigida unanimidade nas decisões, o que implicaria que a política ambiental da Comunidade, ficasse subtraída ao chamado “ mínimo denominador comum (o nível de proteção elevado era aquele que todos os Estados Membros quisessem.
Assim, podemos afirmar que atualmente por força do artigo 3 nº3 do TUE e no artigo 191 nº2 do TFUE, embora noutras áreas da politica comunitária seja afirmado o nível de proteção elevado, é em matéria ambiental que esse princípio/ objetivo é claramente enfatizado.

Qual será, portanto, a função que o NEPE desempenha?
Tal como refere a Professora Alexandra Aragão «o princípio do nível elevado de proteção ecológica é um princípio tipicamente hierarquizador que vale para o direito ecológico como vale para todos os domínios em que a eminência da proteção de bens jurídicos emergentes reclame a prevalência destes sobre outros bens jurídicos conflituantes»[4]. É ainda na opinião da mesma, uma verdadeira regra de conflitos, por ser através do NEPE que se decide, por exemplo, se irá proteger mais ou menos o bem ecológico X OU Y.
Por outras palavras, o NEPE, intervém em situações em que existindo dois ou mais níveis de proteção do ambiente se decide por um ou por outro com base em alguns critérios de referência ( que iremos analisar).

Assim sendo, podemos distinguir duas vertentes no NEPE, sendo elas: a vertente formal (judicativo e legislativo) e a vertente material (resolução de conflitos entre os vários interesses em causa, como forma de apurar qual irá prevalecer).
Primeiramente, quanto aos NEPE (formal) judicativo os conflitos que suscitam a sua intervenção são de três espécies:

1-      Conflito de normas
Se perante um caso concreto, existem pelo menos duas normas de proteção do ambiente diferente, a que conferir o nível mais elevado de proteção, será esse o critério que dará prevalência à N1 ou N2.
Este critério se for cumprido escrupulosamente sobrepor-se-á, em determinadas situações a que não seja respeitado o princípio do primado do direito comunitário na ordem jurídica interna de cada um dos Estados Membros. É o que acontece nas situações em que os Estados Membros fazem uso da cláusula de opting out (artigo 176 do Tratado), ainda que essa prevalência só exista quando a Comissão Europeia, aprova essas medidas.
Mas também poderá acontecer a situação inversa, isto é, de uma norma comunitária se aplicar em detrimento da norma nacional. Aliás, cumpre mesmo referir que para além dos casos em que a prevalência do direito comunitário é claramente notório, por ter uma norma, com um nível de proteção mais elevado, há ainda casos duvidosos, em que mesmo não estando reunidos todos os pressupostos de prevalência do direito europeu (clareza, precisão e incondicionalidade) o NEPE irá suprimir esses requisitos , ou seja, mandará aplicar o direito comunitário por conter uma medida de elevada proteção do ambiente .[5]
1         Dúvidas interpretativas
Quando existir uma dúvida quanto a interpretação de uma norma, escolher-se-á, de entre os sentidos possíveis aquele que se traduz numa proteção da ambiente mais elevada. Por exemplo, se houver operadores económicos que tenham a pretensão de obter uma licença ambiental, mesmo que nos termos da legislação vigente, não lhes seja exigida tal licença não se deve interpretar a lista de atividades constantes na lei, num sentido taxativo, pois a única diferença que estes têm em relação aos operadores económicos abrangidos, é uma garantia de que não pode a Administração exigir-lhes o cumprimento rigoroso das condições previstas na lei[6].
Relativamente ao NEPE legislativo, que pode ser primária ou secundário, quanto ao primeiro momento, entende a doutrina que a proteção do ambiente tem de ser uma preocupação presente na legislação. Nesse pressuposto, ainda que um país onde a qualidade ambiental seja perto daquilo que se considera ótimo, não pode o Estado exonerar-se de tomar medidas de proteção do mesmo.
 Já em relação ao segundo momento legislativo, tal implica que por força do princípio do não retrocesso ecológico e do princípio do progresso ecológico, só poderá haver um retrocesso por força de circunstâncias excecionais (por exemplo, o estado de sitio). Em caso contrário, onde haja uma situação económica e financeira próspera deverá ser reforçada a política ambiental (com recurso a novas tecnologias para a proteção do ambiente e de novos conhecimentos científicos na matéria). A nível internacional, vigoro o princípio de que o novo regime terá de ser pelo menos igual ou superior à medida dos regimes individuais, dando cumprimento à proibição do mínimo denominador comum.

NEPE MATERIAL

1-      Conflito de interesses
Relativamente, a atuação do NEPE, na solução de conflitos de interesses intra ou extra-ecológicos, na base da resolução dos mesmos seguem-se os seguintes critérios: 1- inventariação dos interesses presentes no conflito, 2- hierarquização dos interesses; 3- ponderação através do recurso a princípios jurídicos[7] e por fim a decisão.

Para melhor compreensão do problema, passo a fazer a análise do caso do “ canis lupus ibérico ( lobo ibérico) “, sendo este um exemplo da ponderação de interesses ecológicos e extra- ecológicos.
Em 1981, com a Convenção de Berna “ Proteção da Vida Selvagem e do Ambiente Natural da Europa, o lobo ibérico foi considerado uma espécie “ vulnerável” e mais tarde Portugal na Lei nº 90/88 de 13 de Agosto, ditou o regime para a proteção e conservação desta espécie.
Não obstante, a verdade é que a proteção desta espécie colide com outros interesses:
1-      Em relação aos conflitos heterógenos, podemos ter um interesse extra ecológico vital seja ele atual ou potencial (ex. proteção de uma vida humana) em conflito com um bem ecológico ( ex. conservação da espécie),  sendo que, neste caso por força do artigo 9/ 1º da Convenção de Berna, da ponderação dos dois far-se-á uso da aplicação do princípio da prevalência vital da vida humana ; se, no entanto, estiver em causa um conflito entre um interesse extra-ecológico não vital (desenvolvimento de atividades lúdicas, turísticas ou interesses ligados a agricultura) e um interesse ecológico (proteção da espécie), vale a prevalência biológica  , ou seja,  a sobrevivência da espécie .
2-      Nos casos de conflitos homogéneos: a lei nacional e a Convenção de Berna (no artigo 9/1º) permitem a derrogação do regime de proteção do lobo ibérico, quando esteja em causa a prevenção de danos para a flora e a fauna, nas pescas, agricultura, florestas.
Desta forma, na hierarquização e ponderação dos interesses, quando existe uma oposição entre a sobrevivência da espécie da fauna ou flora e de outra espécie, sendo que uma delas não conste da lista do anexo I e II da Convenção, prevalecerá, por via do princípio da supremacia, aquela que é objeto de proteção.
No caso de não serem espécies protegidas, não existe uma solução consagrada nos diplomas, pelo que atendendo à  ratio do regime “ preservação e transmissão da fauna e flora para as gerações futuras” (Preâmbulo, parágrafo 3 da Convenção), deverá prevalecer o bem ecológico, cuja sua preservação seja mais urgente, por estar em risco a sua não sobrevivência – prevalência da biodiversidade.
Já quando esteja em conflito, bens bióticos e abióticos, em colisão, não se poderá afirmar, sem mais, que prevalecerá o bem biótico, deverá ser feita uma análise concreta da situação subjacente, até porque alguns dos habitats são objeto de proteção na Convenção (cavidades, rochas, água, ninhos , etc ) e a proteção dos bens abióticos , em geral, não constam de normas convencionais[8].

Conclusão:
Depois do estudo do princípio, na sua vertente prática, podemos afirmar que o NEPE é um princípio conformador do Estado de Direito Ambiental, isto é, aquele Estado que tem uma política ambiental de proteção elevada.
No entanto, a densificação e concretização do princípio, ainda é insuficiente, pelo que seria fundamental proceder a uma revisão da legislação ambiental à luz do NEPE, podendo este princípio ter uma vertente ainda mais antecipatória dos riscos ambientais.
Além disso, em relação as práticas de “ gold-plating”[9], previstas no artigo 193 do TFUE, pela qual os Estados podem optar por tomar medidas de proteção reforçadas desde que compatíveis com o Tratado ( e devidamente notificadas à Comissão Europeia), essas práticas essenciais,  pois tal asseguraria alcançar a tão desejada “ proteção elevada do ambiente “. Não obstante, o que tem acontecido é que os Estados não fazem uso dessa possibilidade[10], não indo por isso além das exigências mínimas das Diretivas.
De entre muitos motivos que podem ser invocados, as razões europeias poderão estar na génese da não adoção de uma proteção reforçada, uma vez que a prática da jurisprudência do TJCE tem sido rejeitar algumas dessas medidas, justificando essas rejeições com base nas liberdades fundamentais da União Europeia, veja - se por exemplo, o acórdão de 16 de Julho de 2009, processo C- 165/08, na qual o TJCE apoia a Comissão Europeia, no sentido de negar à Polónia a possibilidade de proibir a libertação voluntária no ambiente de organismos geneticamente modificados e ainda no caso da Chipre[11] que pretendia colocar estes alimentos em prateleiras separados dos alimentos convencionais (equivalentes), proposta essa que Comissão rejeitou.
Desta forma, entendo que a aplicação do NEPE nas suas vertentes: princípio da precaução e prevenção, tem ficando aquém das expectativas, como é demonstrado por estas duas recusas de proteção mais elevada. Se a Comissão Europeia tem conhecimento dos riscos da produção destes alimentos, deveria adotar uma política de proteção ambiental mais rigorosa, e se não o fez, pelo menos que não rejeitasse que tais medidas fossem levadas a cabo pelos Estados Membros. Por todas estas razões urge fazer uma reponderação da eficácia do NEPE, quer a nível interno quer comunitário.





 Sara Silva nº 20714




[1] Até a revisão do Tratado em 1997, tal como a doutrina entende, não faz sentido exigir um elevado nível de proteção.
[2] A doutrina entende, que o NEPE estabelece um limite de conformação dos Estados à política comunitária.
[3] Há ainda que referir que a obrigação de estabelecer níveis de proteção elevado em matéria ambiental, passa a ser obrigatório não só as propostas da Comissão como ás decisões finais do Parlamento e do Conselho ( art.º 192 TFUE)
[4] Alexandra Aragão, em “ O Principio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 150- 152. É de referir ainda que a autora refere-se a “ direito ecológico” e não a “ direito do ambiente”, devido a uma distinção em que a mesma concebe o “direito ecológico”, não como um direito relacional, entre Homens por causa do ambiente, mas sim um direito que estabelece condutas juridicamente relevantes do Homem com vista a sustentabilidade ambiental.
[5] Veja-se o caso apresentado pela Professora Alexandra Aragão: “ Um local para deposito de lamas que se encontra incluído na Diretiva 85/337 com as alterações da Diretiva 97/11, sendo uma obra publica está sujeito a uma prévia avaliação de impacto ambiental, mas o mesmo projeto sendo uma obra particular não estaria abrangido por esse procedimento e não se poderia intentar uma ação contra o particular, uma vez que as Diretivas teriam como destinatário os Estados ( pág. 155-157)
Entende a Professora, que o NEPE impõe ao julgador a aplicação imediata, mesmo aos particulares, da norma jurídica que, sendo valida e vigente no ordenamento jurídico e diretamente aplicável, garanta um nível mais elevado de proteção, em  “ O Principio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Almedina, Coimbra, 2006
[6] Veja-se os casos apresentados, pela Professora Alexandra Aragão, em “ O Principio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Almedina, Coimbra, 2006 pág. 158-164
[7] Esses princípios que estão na base da resolução são : o princípio da equivalência intra-ecológica; o princípio da equivalência intra-ecologica in situ, o princípio da paridade ecológica do Homem ex situ e o princípio da justiça ecológica intergeracional e além destes ainda têm o princípio da supremacia, da precaução, da precedência temporal e da concordância prática. Para mais desenvolvimentos sobre os mesmos, ver Alexandra Aragão em “ O Principio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 171 e ss
[8]  Alexandra Aragão em “ O Principio do Nível Elevado de Proteção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 229 a 232
[9] Alexandra Aragão, em Dimensões Europeias do Principio da Precaução, in RFDUP, ano 7, 2010 pág. 277 -280
[10] Veja se o Caso do Direito Reunido, que adotou uma politica de “ no gold-plating” no Guia sobre Transposição de Diretivas
[11] Decisão 2006/255/ CE, de 14 de Março de 2006

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