quinta-feira, 10 de abril de 2014

ACTOS ADMINISTRATIVOS AUTORIZATIVOS: EFEITOS IRRADIANTES

Caso prático fictício

Um grupo de cidadãos da cidade X, diz-se lesado pela actividade de extracção mineira levada a cabo pela empresa Pedras e Geologia, S.A., que realiza essa extracção a cerca de 800m da referida cidade. Afirmam existir constantes vestígios de um pó negro com tons dourados a proliferar pela atmosfera da sua cidade, sendo possível constatar vestígios do mesmo nas paredes exteriores das suas habitações. Consideram por isso que a qualidade do ar da sua cidade está nitidamente afectada, sendo ainda perigosa a inalação permanente e prolongada do referido pó por parte dos cidadãos, podendo o mesmo causar sérios problemas de saúde a longo prazo. No entanto a Pedras e Geologia, S.A. diz ter todas as licenças para uma lícita exploração, alegando que todos os actos administrativos autorizativos foram concedidos atempadamente pela entidade administrativa competente (Agência Portuguesa do Ambiente, I.P.), nos termos legalmente previstos, tendo os mesmos sido concedidos depois de ponderada a situação subjectiva de proximidade dos cidadãos da cidade X. A empresa Pedras e Geologia, S.A. alega assim que respeitou, e continua a respeitar, as prescrições previstas no acto de licenciamento, logo nada mais pode fazer.

Existe alguma ilicitude na conduta da empresa de extracção mineira?

        Os factos fictícios expostos guiam-nos para o problema que se levanta com a emissão de um acto administrativo autorizativo (licença, autorização, concessão, plano) de uma actividade que provoque danos na esfera de terceiros. O que está aqui em causa reconduz-nos ao tema das relações jurídicas multilaterais (ou multipolares, ou poligonais), criando-se com elas um complexo esquema de vinculações e afectações, que não se prende a uma concepção puramente bilateral entre particular e Administração (basta pensar no exemplo sempre dado pelo Prof. Vasco Pereira da Silva do pescador de chalupa)[1], como igualmente, às relações entre a ordem jurídico-administrativa e a ordem jurídico-civil.
A questão centra-se na análise, em concreto, na existência ou não de um efeito justificativo da ilicitude (no âmbito civil) de actividades privadas lesivas, provocado pelo acto administrativo autorizativo. Será, abordando este tema, que tentaremos encontrar resposta para a questão colocada.
O problema central aqui em causa está em saber se o acto administrativo autorizativo tem eficácia jurídico-civil[2] (“efeitos irradiantes”) e se tendo, o mesmo se pode configurar como uma causa justificativa da ilicitude de uma actividade lesiva levada a cabo por um particular, no seu âmbito. Ou seja, estamos no campo das relações existentes entre várias ordens jurídicas (ordem jurídico-civil e ordem jurídico-administrativa), havendo várias linhas argumentativas quanto às relações entre as várias ordens e a existência de efeitos que se transferem de uma ordem para outra.

Uma primeira linha argumentativa remete a questão para a concorrência de normas e as contradições normativas, estando em causa uma norma legitimadora da ilicitude, e uma outra que fixa uma causa de exclusão dessa mesma ilicitude, sendo que o problema será tanto maior quantas mais forem as ordens jurídicas envolvidas. Aqui o problema resolver-se-ia pela limitação do âmbito de uma das normas (traduzir-se-ia na limitação do âmbito da norma de justificação ao ramo que a mesma pertence) ou pela preferência da norma de justificação pertencente à ordem jurídico-administrativa face à norma que estabelece a ilicitude na ordem jurídico-civil (desde que resulte “inequivocamente da lei e não ofenda os princípios básicos jurídico-constitucionais”[3]).

Uma segunda orientação defende o efeito justificativo com eficácia nas várias ordens jurídicas, olhando para o ordenamento jurídico como um todo, como uma unidade. Este entendimento visa assim evitar contradições normativas, defendendo o efeito irradiante das causas justificativas da ilicitude de um ramo do direito para outro.

Por fim, outra posição entende que a qualificação como ilícita de uma actividade se deve limitar ao âmbito específico de cada ramo do direito. Ou seja, estaríamos perante diferentes ilicitudes, sendo que o problema das causas de justificação nunca se reconduziria a respostas unitárias; uma autorização administrativa seria causa justificativa no direito administrativo, já não o seria no direito civil.

Parece-nos de excluir, desde logo, esta última orientação na medida em que a mesma concebe os vários ramos jurídicos como compartimentos estanques, sem interligação entre eles, seriam ordens fechadas sobre si mesmas sem quaisquer janelas de ligação a outras ordens. Procurando uma resposta (extrema!) ao problema da unidade dos vários ramos, ela própria não resolve as contradições no ordenamento jurídico[4]. A própria realidade acaba por vincar o âmbito dinâmico e interligado em que as várias ordens jurídicas se encontram, sendo difícil analisar uma questão que relaciona dois ramos jurídicos, olhando singularmente para cada um deles, sem perceber esse mesmo relacionamento e sem ter em atenção uma articulação necessária entre ambos.
O próprio princípio da unidade da ordem jurídica é insuficiente, por si só, para resolver as contradições que uma solução impõe. Assim sendo, só estaríamos perante uma contradição quando as regras de interpretação e de integração de lacunas não resolvessem a questão. Por outro lado, a não adopção de qualquer critério sólido e lógico transformará a escolha por uma ou outra norma, meramente arbitrária, não se podendo afirmar existir prevalência de uma regra sobre a outra.
A resposta deve ser procurada no temperamento entre a visão que defende a unidade do ordenamento jurídico como um todo, valendo assim a causa justificativa da ilicitude em qualquer ramo jurídico, e a visão que transpõe a questão para a concorrência de normas e para a existência de contradições normativas. Ao admitir-se a possibilidade de existirem contradições normativas entre disposições de várias ordens jurídicas estar-se-á já a observar o problema como um todo, considerando os vários ramos jurídicos que se interceptam naquela situação concreta. Isto é, não se deve optar por uma visão rígida, centrando o problema apenas nas contradições normativas, nem por uma visão demasiado liberal de um ordenamento jurídico “sem fronteiras”, desconsiderando totalmente as especificidades que cada ordem jurídica em si encerra. A ideia terá que se centrar na articulação entre ambas as ordens em confronto e ver no caso concreto qual aquela que deve ceder, qual aquela que tutela o bem que carece de maior protecção, tendo obviamente esse bem que ter acolhimento constitucional. Perante isto, não parece totalmente acertada a construção do Prof. Gomes Canotilho de, em abstracto, equacionar desde logo a prevalência da “norma de justificação” face à “norma de ilicitude” desde que aquela “estabeleça claramente os pressupostos conducentes à exclusão da norma de ilicitude”[5], sendo de acompanhar ainda assim a submissão da mesma ao ordenamento jurídico constitucional. Ou seja, a opção, para não ser arbitrária, deve centrar-se num critério ponderado entre as duas normas em confronto, no caso concreto, para que se possa abdicar de uma e aplicar a outra.

Como aferir a existência ou não de ilicitude civil no caso em análise?

Todos os actos administrativos autorizativos foram concedidos para que a actividade fosse desenvolvida pelo particular, logo na perspectiva da ordem jurídico-administrativa existe uma causa de exclusão da ilicitude da conduta lesiva. Todavia, resta aferir se essa causa justificativa se estende ao ordenamento jurídico-civil, excluindo aqui também a ilicitude. A administração, antes da emissão do acto autorizativo, pondera a possibilidade de efeitos lesivos futuros advindos da actividade que está a autorizar (por exemplo, arts. 3º e 5º do RJAIA, 30º e segs da LBA ou 34º e segs do Decreto-lei nº 127/2013 que regula o procedimento de emissão de Licença Ambiental), logo ela própria tem o dever de aferir as circunstâncias em que a actividade se irá desenvolver e os possíveis danos resultantes dessa mesma actividade (postura essa que respeita os princípios da prevenção (3º al.a) LBA) e da precaução). Não será este controlo a priori feito na ordem jurídico-administrativa (e também a posteriori, por exemplo 26º e segs RJAIA) suficientemente denso, para dele se extrair uma causa de justificação da ilicitude para a ordem jurídico-civil? Entendemos que sim, até por uma questão de segurança jurídica, na medida em que uma qualquer entidade que pretenda desenvolver uma actividade que poderá causar danos, está sujeita a um controlo prévio e pormenorizado por parte do Estado-administração, não fazendo sentido depois concluir que toda essa avaliação e a respectiva conclusão pela autorização, legalmente obtida da actividade, não é suficientemente “forte” para ter efeitos a nível civil como causa de justificação. Não se trata de dizer que a norma justificadora prevalece sobre a norma de ilicitude porque uma pertence ao ordenamento jurídico-administrativo e a outra ao jurídico-civil, nem muito menos se pretende afirmar a relação de generalidade/especialidade entre um e outro[6], mas sim uma ponderação lógica entre ambas as normas em confronto, tentando alcançar uma solução racional e justa.

No caso concreto tratando-se de uma actividade de extracção mineira está sujeita precisamente a AIA (1º nº3 al.a) que remete para o anexo I nº18, 1º nº3 al.b) ii) que remete para o nº1 al.c) do anexo III) e a emissão de LA (2º nº1 a) DL 127/2013 que remete para o anexo I nº3), logo adstrita a um grande controlo de modo a que possa ser autorizada a exercer a sua actividade legalmente. Já estando a actividade sujeita a este apertado controlo no âmbito da ordem jurídico-administrativa, não se afigura justificativo não haver uma ponderação e uma valoração do mesmo controlo no âmbito da ordem jurídico-civil. Conclui-se assim pela causa de justificação da ilicitude ao nível civil, operada pela emissão dos actos administrativos autorizativos para o desenvolvimento da actividade.

Apesar de se concluir pela causa de justificação da ilicitude no âmbito civil, não se coloca de parte o ressarcimento dos danos que ao caso caibam, os mesmos devem ser compensados. Obviamente, aqui não por uma responsabilidade por acto ilícito mas sim por acto lícito ou pelo sacrifício que é imposto aos lesados pelo acto administrativo autorizativo e consequente desenvolvimento da actividade autorizada[7].



 David Carapinha 21010





[1] Vasco Pereira da Silva, Lições de Direito do Ambiente – Da Constituição Verde para as Relações Jurídicas Multilaterais, pág. 106
 [2] Como bem delimita a questão o Prof. J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos, pág.5.
[3] J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos, pág.28.
[4] Mafalda Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança, pág. 175 e 176.
[5] J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos, pág.28
[6] Mafalda Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança, pág. 181.
[7] J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos, pág. 51 e Vasco Pereira da Silva, Verdes são também os Direitos do Homem – Responsabilidade Administrativa em matéria Ambiental, pág. 42.


BIBLIOGRAFIA:

- J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos;

Mafalda Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança;

Vasco Pereira da Silva, Lições de Direito do Ambiente – Da Constituição Verde para as Relações Jurídicas Multilaterais;

Vasco Pereira da Silva, Verdes são também os Direitos do Homem – Responsabilidade Administrativa em matéria Ambiental.

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