ACTOS ADMINISTRATIVOS
AUTORIZATIVOS: EFEITOS IRRADIANTES
Caso prático fictício
Um grupo de cidadãos
da cidade X, diz-se lesado pela actividade de extracção mineira levada a cabo
pela empresa Pedras e Geologia, S.A., que realiza essa extracção a cerca de 800m
da referida cidade. Afirmam existir constantes vestígios de um pó negro com
tons dourados a proliferar pela atmosfera da sua cidade, sendo possível constatar
vestígios do mesmo nas paredes exteriores das suas habitações. Consideram por
isso que a qualidade do ar da sua cidade está nitidamente afectada, sendo ainda
perigosa a inalação permanente e prolongada do referido pó por parte dos
cidadãos, podendo o mesmo causar sérios problemas de saúde a longo prazo. No
entanto a Pedras e Geologia, S.A. diz ter todas as licenças para uma lícita
exploração, alegando que todos os actos administrativos autorizativos foram
concedidos atempadamente pela entidade administrativa competente (Agência
Portuguesa do Ambiente, I.P.), nos termos legalmente previstos, tendo os mesmos
sido concedidos depois de ponderada a situação subjectiva de proximidade dos
cidadãos da cidade X. A empresa Pedras e Geologia, S.A. alega assim que
respeitou, e continua a respeitar, as prescrições previstas no acto de
licenciamento, logo nada mais pode fazer.
Existe alguma ilicitude na conduta da empresa de extracção mineira?
Os factos fictícios expostos guiam-nos para o problema que
se levanta com a emissão de um acto administrativo autorizativo (licença,
autorização, concessão, plano) de uma actividade que provoque danos na esfera
de terceiros. O que está aqui em causa reconduz-nos ao tema das relações
jurídicas multilaterais (ou multipolares, ou poligonais), criando-se com elas
um complexo esquema de vinculações e afectações, que não se prende a uma
concepção puramente bilateral entre particular e Administração (basta pensar no
exemplo sempre dado pelo Prof. Vasco Pereira da Silva do pescador de chalupa)[1],
como igualmente, às relações entre a ordem jurídico-administrativa e a ordem
jurídico-civil.
A questão centra-se na análise, em concreto, na existência
ou não de um efeito justificativo da ilicitude (no âmbito civil) de actividades
privadas lesivas, provocado pelo acto administrativo autorizativo. Será, abordando
este tema, que tentaremos encontrar resposta para a questão colocada.
O problema central aqui em causa está em saber se o acto
administrativo autorizativo tem eficácia jurídico-civil[2]
(“efeitos irradiantes”) e se tendo, o mesmo se pode configurar como uma causa
justificativa da ilicitude de uma actividade lesiva levada a cabo por um
particular, no seu âmbito. Ou seja, estamos no campo das relações existentes
entre várias ordens jurídicas (ordem jurídico-civil e ordem
jurídico-administrativa), havendo várias linhas argumentativas quanto às
relações entre as várias ordens e a existência de efeitos que se transferem de
uma ordem para outra.
Uma primeira linha argumentativa
remete a questão para a concorrência de normas e as contradições normativas,
estando em causa uma norma legitimadora da ilicitude, e uma outra que fixa uma
causa de exclusão dessa mesma ilicitude, sendo que o problema será tanto maior
quantas mais forem as ordens jurídicas envolvidas. Aqui o problema
resolver-se-ia pela limitação do âmbito de uma das normas (traduzir-se-ia na
limitação do âmbito da norma de justificação ao ramo que a mesma pertence) ou
pela preferência da norma de justificação pertencente à ordem
jurídico-administrativa face à norma que estabelece a ilicitude na ordem
jurídico-civil (desde que resulte “inequivocamente da lei e não ofenda os
princípios básicos jurídico-constitucionais”[3]).
Uma segunda orientação defende o
efeito justificativo com eficácia nas várias ordens jurídicas, olhando para o
ordenamento jurídico como um todo, como uma unidade. Este entendimento visa
assim evitar contradições normativas, defendendo o efeito irradiante das causas
justificativas da ilicitude de um ramo do direito para outro.
Por fim, outra posição entende
que a qualificação como ilícita de uma actividade se deve limitar ao âmbito
específico de cada ramo do direito. Ou seja, estaríamos perante diferentes
ilicitudes, sendo que o problema das causas de justificação nunca se
reconduziria a respostas unitárias; uma autorização administrativa seria causa
justificativa no direito administrativo, já não o seria no direito civil.
Parece-nos de excluir, desde
logo, esta última orientação na medida em que a mesma concebe os vários ramos
jurídicos como compartimentos estanques, sem interligação entre eles, seriam
ordens fechadas sobre si mesmas sem quaisquer janelas de ligação a outras
ordens. Procurando uma resposta (extrema!) ao problema da unidade dos vários
ramos, ela própria não resolve as contradições no ordenamento jurídico[4].
A própria realidade acaba por vincar o âmbito dinâmico e interligado em que as
várias ordens jurídicas se encontram, sendo difícil analisar uma questão que
relaciona dois ramos jurídicos, olhando singularmente para cada um deles, sem
perceber esse mesmo relacionamento e sem ter em atenção uma articulação
necessária entre ambos.
O próprio princípio da unidade da
ordem jurídica é insuficiente, por si só, para resolver as contradições que uma
solução impõe. Assim sendo, só estaríamos perante uma contradição quando as
regras de interpretação e de integração de lacunas não resolvessem a questão.
Por outro lado, a não adopção de qualquer critério sólido e lógico transformará
a escolha por uma ou outra norma, meramente arbitrária, não se podendo afirmar
existir prevalência de uma regra sobre a outra.
A resposta deve ser procurada no
temperamento entre a visão que defende a unidade do ordenamento jurídico como
um todo, valendo assim a causa justificativa da ilicitude em qualquer ramo
jurídico, e a visão que transpõe a questão para a concorrência de normas e para
a existência de contradições normativas. Ao admitir-se a possibilidade de
existirem contradições normativas entre disposições de várias ordens jurídicas
estar-se-á já a observar o problema como um todo, considerando os vários ramos
jurídicos que se interceptam naquela situação concreta. Isto é, não se deve
optar por uma visão rígida, centrando o problema apenas nas contradições
normativas, nem por uma visão demasiado liberal de um ordenamento jurídico “sem
fronteiras”, desconsiderando totalmente as especificidades que cada ordem
jurídica em si encerra. A ideia terá que se centrar na articulação entre ambas
as ordens em confronto e ver no caso concreto qual aquela que deve ceder, qual
aquela que tutela o bem que carece de maior protecção, tendo obviamente esse
bem que ter acolhimento constitucional. Perante isto, não parece totalmente
acertada a construção do Prof. Gomes Canotilho de, em abstracto, equacionar
desde logo a prevalência da “norma de justificação” face à “norma de ilicitude”
desde que aquela “estabeleça claramente os pressupostos conducentes à exclusão
da norma de ilicitude”[5],
sendo de acompanhar ainda assim a submissão da mesma ao ordenamento jurídico
constitucional. Ou seja, a opção, para não ser arbitrária, deve centrar-se num
critério ponderado entre as duas normas em confronto, no caso concreto, para
que se possa abdicar de uma e aplicar a outra.
Como aferir a existência ou não
de ilicitude civil no caso em análise?
Todos os actos administrativos
autorizativos foram concedidos para que a actividade fosse desenvolvida pelo
particular, logo na perspectiva da ordem jurídico-administrativa existe uma
causa de exclusão da ilicitude da conduta lesiva. Todavia, resta aferir se essa
causa justificativa se estende ao ordenamento jurídico-civil, excluindo aqui
também a ilicitude. A administração, antes da emissão do acto autorizativo,
pondera a possibilidade de efeitos lesivos futuros advindos da actividade que
está a autorizar (por exemplo, arts. 3º e 5º do RJAIA, 30º e segs da LBA ou 34º
e segs do Decreto-lei nº 127/2013 que regula o procedimento de emissão de
Licença Ambiental), logo ela própria tem o dever de aferir as circunstâncias em
que a actividade se irá desenvolver e os possíveis danos resultantes dessa
mesma actividade (postura essa que respeita os princípios da prevenção (3º
al.a) LBA) e da precaução). Não será este controlo a priori feito na ordem jurídico-administrativa (e também a posteriori, por exemplo 26º e segs
RJAIA) suficientemente denso, para dele se extrair uma causa de justificação da
ilicitude para a ordem jurídico-civil? Entendemos que sim, até por uma questão
de segurança jurídica, na medida em que uma qualquer entidade que pretenda
desenvolver uma actividade que poderá causar danos, está sujeita a um controlo
prévio e pormenorizado por parte do Estado-administração, não fazendo sentido
depois concluir que toda essa avaliação e a respectiva conclusão pela
autorização, legalmente obtida da actividade, não é suficientemente “forte”
para ter efeitos a nível civil como causa de justificação. Não se trata de
dizer que a norma justificadora prevalece sobre a norma de ilicitude porque uma
pertence ao ordenamento jurídico-administrativo e a outra ao jurídico-civil,
nem muito menos se pretende afirmar a relação de generalidade/especialidade
entre um e outro[6], mas sim
uma ponderação lógica entre ambas as normas em confronto, tentando alcançar uma
solução racional e justa.
No caso concreto tratando-se de
uma actividade de extracção mineira está sujeita precisamente a AIA (1º nº3
al.a) que remete para o anexo I nº18, 1º nº3 al.b) ii) que remete para o nº1
al.c) do anexo III) e a emissão de LA (2º nº1 a) DL 127/2013 que remete para o
anexo I nº3), logo adstrita a um grande controlo de modo a que possa ser
autorizada a exercer a sua actividade legalmente. Já estando a actividade
sujeita a este apertado controlo no âmbito da ordem jurídico-administrativa,
não se afigura justificativo não haver uma ponderação e uma valoração do mesmo
controlo no âmbito da ordem jurídico-civil. Conclui-se assim pela causa de
justificação da ilicitude ao nível civil, operada pela emissão dos actos
administrativos autorizativos para o desenvolvimento da actividade.
Apesar de se concluir pela causa
de justificação da ilicitude no âmbito civil, não se coloca de parte o
ressarcimento dos danos que ao caso caibam, os mesmos devem ser compensados.
Obviamente, aqui não por uma responsabilidade por acto ilícito mas sim por acto
lícito ou pelo sacrifício que é imposto aos lesados pelo acto administrativo
autorizativo e consequente desenvolvimento da actividade autorizada[7].
[1] Vasco
Pereira da Silva, Lições de Direito do Ambiente – Da Constituição Verde para as
Relações Jurídicas Multilaterais, pág. 106
[3] J.J.
Gomes Canotilho, Actos Autorizativos
jurídico-públicos, pág.28.
[4] Mafalda
Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança, pág. 175
e 176.
[5] J.J.
Gomes Canotilho, Actos Autorizativos
jurídico-públicos, pág.28
[6] Mafalda
Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança, pág.
181.
[7] J.J.
Gomes Canotilho, Actos Autorizativos
jurídico-públicos, pág. 51 e Vasco Pereira da Silva, Verdes são também os
Direitos do Homem – Responsabilidade Administrativa em matéria Ambiental, pág.
42.
BIBLIOGRAFIA:
- J.J. Gomes Canotilho, Actos Autorizativos jurídico-públicos;
- Mafalda Carmona, O Acto Administrativo Conformador das Relações de Vizinhança;
- Vasco Pereira da Silva, Lições de Direito do Ambiente – Da Constituição Verde para as Relações Jurídicas Multilaterais;
- Vasco Pereira da Silva, Verdes são também os Direitos do Homem – Responsabilidade Administrativa em matéria Ambiental.
Sem comentários:
Enviar um comentário