terça-feira, 8 de abril de 2014

Do Princípio da Precaução: Perspectivas Nacionais e Europeias

 §1.  Considerações iniciais. O surgimento e evolução do princípio da precaução

Os princípios são, como se sabe, de extrema importância na interpretação e aplicação do Direito. E, de facto, estará aqui em causa a análise mais detalhada – tanto nacional, como internacional – de um dos princípios que rege em matéria ambiental: o princípio da precaução. A pergunta logicamente seguinte é fácil de prever: o que é o princípio da precaução? E de que forma o princípio da precaução se pode distinguir do princípio da prevenção? São questões como estas que cuidaremos tratar neste estudo.
       Como nos mostra Alexandra Aragão[1], apesar de ter já um antecedente nos anos 70 (nomeadamente, sob a pena de Hans Jonas), é na década de 90 do séc. XX que o princípio da precaução começa a ter maior reconhecimento: quer doutrinal, quer legal, através da sua consagração em vários diplomas legislativos: à cabeça, a Declaração do Rio Sobre Desenvolvimento e Ambiente (ONU) (princípio 15), a Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, entre outros[2], bem como a nível europeu, nomeadamente, através do artigo 130-R TCE (que passaria a ser o art. 174.º TCE após o Tratado de Amsterdão e  é  actualmente o art. 191.º TFUE, (Cfr. n.º 2)[3]. Contudo, e apesar de ser mencionado em vários instrumentos legislativos internacionais ou de índole comunitária, tanto o seu conteúdo, como a sua autonomia [maxime, no ordenamento jurídico português] são questões nebulosas, quer porque não existe ainda um consenso sobre o rigoroso conceito de «precaução» a adoptar[4] quer porque é discutível se este princípio vigora, ou não, na nossa ordem jurídica[5]. São fundamentalmente estas duas questões que irão ser tratadas na nossa intervenção.

§1.1. O princípio da prevenção versus o princípio da prevenção: Um conceito autónomo?

 Antes de saber se o princípio da precaução existe, enquanto tal, temos que saber a que é que ele se refere.              É preciso notar que este  princípio é, como reconhece a generalidade da doutrina, uma aquisição relativamente recente do Direito do Ambiente[6]. O que entender, então, por «precaução»? A dificuldade surge na medida em que este princípio muitas vezes se confunde com outro princípio jus-ambiental: o da prevenção. Isto porque tanto um princípio, como outro, visam o reforço de actuações necessariamente anteriores (e, se possível, com efeitos extintivos) à ocorrência de danos ambientais. Aliás, o princípio da prevenção tem como comando de acção precisamente o imperativo de, em vez de contabilizar os danos e os reparar, se dever sobretudo evitar a ocorrência de danos, antes de eles terem acontecido[7]. Isto porque, não raro, os danos gerados podem ser de restituição impossível, como será o caso (de escola) de extinção de uma espécie animal. Contudo, este princípio – o princípio da prevenção – tem um traço que o distingue do princípio da precaução (que, tal como este, impõe medidas de minoração dos riscos ambientais antes destes acontecerem): é que este princípio implica a adopção de medidas anteriores à ocorrência de um dano cuja origem é conhecida[8]; por sua vez, no âmbito do princípio da precaução, lidamos com riscos hipotéticos ou potenciais. Isto significa que a distinção entre prevenção, por um lado, e precaução, por outro, se fará nos seguintes termos: «a precaução destina-se a controlar riscos hipotéticos ou potenciais, enquanto a prevenção visa evitar riscos comprovados. Por isso o princípio da precaução é proactivo, enquanto o princípio da prevenção é essencialmente reactivo [itálicos nossos]», como muito bem refere Alexandra Aragão[9].

 De facto, quer a gravidade, quer a irreversibilidade do dano ambiental em causa são sujeitos à incerteza, o que significa que, enquanto no domínio da prevenção estamos no domínio da probabilidade, na precaução estamos perante situações de possibilidade [10]. Na verdade, este princípio tem, como pressuposto de aplicação, uma situação de incerteza, no sentido em que, nestes casos, o ambiente deve ter  o benefício da dúvida, consubstanciado no estabelecimento de um nexo de causalidade entre  uma  certa actividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação ambiental: no fundo, uma espécie de princípio in dúbio pro ambiente, que, na dúvida relativa à perigosidade ambiental de certa conduta, se decide a favor do ambiente e contra o presumível poluidor[11].

       Ora, o estabelecimento desse nexo de causalidade tem uma consequência adjectiva muito específica,  que é a de o onus probandi da conformidade ambiental de uma certa actuação passar do Estado ou potenciais poluídos para a entidade que pretende levar a cabo essa actividade; i.e., o presumível poluidor[12]. A dúvida sobre a perigosidade de uma actividade para o ambiente pode resultar, de resto, de vários factores, nomeadamente a não verificação de quaisquer danos por uma determinada actividade, que coexiste com o receio (apesar da falta de quaisquer provas científicas) de vir a ocorrer; havendo danos, as não o conhecimento científico sobre a sua especifica causa; ou, havendo dano, não haver provas científicas no sentido de estabelecer um nexo de causalidade entre o dano ocorrido e a actividade concretamente exercida[13].

            Contudo, esta distinção realizada com base no tipo de risco em causa não é consensual na nossa doutrina. Com efeito, Vasco Pereira da Silva evoca a unidade deste conceito, i.e, para este Autor, precaução e prevenção fazem parte do mesmo conceito; ou, se quisermos, a referência à precaução será entendida apenas como uma referência ao princípio da precaução, lato sensu, apesar de a realidade internacional e comunitária exigirem que tenhamos sempre em consideração esta distinção[14].

Também Carla Amado Gomes revela uma opinião contrária a uma distinção (atribuindo autonomia a cada um dos princípios, leia-se) entre os princípios da prevenção e precaução. E isto por um extenso leque de argumentos.

      Desde logo, a consideração (baseada no facto de o princípio da precaução se fundar em possibilidades) de que, interpretado restritivamente, o princípio da precaução levar a que todas as actuações que, com um grau de previsibilidade mínimo, pudessem lesar o ambiente, pudessem ser evitadas, salvo havendo uma certeza quase absoluta sobre a sua inocuidade: ora, sendo tal atitude «irrealista», a vertente maximalista deste princípio não será operativa, de onde decorrerá que:
a)       Ou a intervenção ambiental apenas é aceite havendo comprovação científica do risco (ou a alta probabilidade da sua ocorrência) de lesão grave e irreversível, deixando neste caso de fazer sentido uma distinção;
b)      Ou a intervenção ambiental apenas é aceitável, na ausência de certezas científicas sobre a possibilidade de dano, devendo haver uma especial exigência de ponderação dos interesses em causa[15].

No fundo, a visão de Carla Amado Gomes reside no seguinte: traduzindo-se o princípio da precaução, substancialmente, numa prevenção qualificada agravada que faria com que se proibisse uma actividade cujo efeito ambiental é desconhecido ou a intervenção é legitimada com o fito de evitar um determinado efeito do qual ainda não se tem a certeza, aceitar tal intervenção «precaucionista» significaria fazer do ambiente um valor prevalecente em qualquer situação, sendo superior aos demais valores objecto de ponderação, sem qualquer ponderação minimamente cuidada de outros interesses: solução essa que, pelo seu «fundamentalismo», seria de rejeitar, ao que acresce a verdadeira probatio diabolica imposta no caso de se exigir ao presumível poluidor a prova da total inocuidade da sua actividade. Ora, a questão reside, para Carla Amado Gomes, em saber se, no nosso ordenamento jurídico, existe alguma norma constitucional que legitime esta posição hierarquicamente superior do princípio da precaução. E se o princípio da prevenção tem assento constitucional (art. 66.º, n.º 1, al. a) CRP), o mesmo não se poderia dizer do princípio da precaução[16].

            A análise do princípio da precaução não pode, contudo, esquecer-se da vertente jus-comunitária na matéria. Aliás, como referimos supra, o art. 191.º, n.º 2 TFUE rege na matéria, estabelecendo claramente a existência de um princípio da precaução. Por isso, a questão está, como bem intui Carla Amado Gomes, em saber se o princípio da precaução é dotado de efeito directo[17]. Essa questão será por nós tratada em §1.2., mas, para o que aqui releva, Carla Amado Gomes sustenta que o preceito jus-comunitário não tem aplicabilidade directa na nossa ordem jurídica: isto porque, na sua opinião, para além de ser duvidoso que um princípio cujo conteúdo é controvertido no Direito Internacional (já que a sua formulação é diferente em diversos instrumentos legais) possa adquirir, no Direito Comunitário, contornos tão «claros, precisos e incondicionais, que vinculem os Estados-Membros», não sendo, aliás, «líquido que dum princípio possa sair uma obrigação clara, precisa, e incondicional»[18] . Indiscutível é, sim, a vinculação da CE a este domínio na política ambiental, bem como a obrigação de os Estados-Membros respeitarem a legislação comunitária emitida nesse âmbito em homenagem ao princípio da solidariedade (antigo art. 10.º, TCE), pelo que, a haver vinculação dos Estados Membros, tal será pela via dos actos normativos concretos, e não por aplicação directa do (agora) artigo 192.º[19].

            Ora, essa conclusão leva Carla Amado Gomes a referir que, não havendo adstrição directa do Estado português ao princípio da precaução pela via comunitária, é necessária uma análise das várias normas constitucionais ambientais, das quais retira da exigência de um entendimento qualificado do princípio da prevenção, o princípio da precaução: com efeito, a Autora recorre, com esse intuito, aos arts. 9.º/ e), 66.º, n.º 2, 81.º, l) e m), entre outros, de onde retira o seguinte: apesar de não haver consagração explícita do princípio da precaução, isso não impede que o legislador esteja vinculado a um «dever de ponderação agravada do interesse ambiental, por força da leitura sistemática da Lei Fundamental e do imperativo de proporcionalidade»[20]. Por a argumentação estar apresentada de forma bastante clara, e dado o escopo necessariamente breve desta intervenção, para lá remetemos[21].

            Contudo, e apesar da boa argumentação, não concordamos com Carla Amado Gomes quando esta autora nega autonomia ao princípio da precaução, precisamente no pressuposto lógico da tese que defende, e que reside na inaplicabilidade directa do art. 192.º TFUE. É isso que tentaremos demonstrar, a par de uma breve introdução do princípio da precaução no Direito da União Europeia, em §1.2.
       
§1.2. O princípio da precaução no «Sofá da Europa»: um princípio presenta na nossa ordem jurídica?

O princípio da precaução conta já com alguma aplicação em sede de Direito da União Europeia. Com efeito, e apesar de só ter conhecido consagração expressa com o Tratado de Maastricht, a gestão de riscos ambientais teve início formal anterior: nomeadamente, com uma Directiva (A Directiva 82/501, de 24 de Junho, também conhecida como Directiva Seveso), que tinha como objectivo de prevenir acidentes industriais que envolveram substâncias químicas perigosas, em resposta ao grave acidente industrial ocorrido nas fábricas Industrie Chimiche Meda Società Azionara, em 10 de Julho de 1976[22]. Para além dessas medidas, previam-se, grosso modo, sistemas de troca de informações, que viram o seu âmbito de aplicação aumentado com a revisão desta directiva, dando origem à Directiva Seveso II (Directiva 96/82), a par de uma série de outros instrumentos regulativos, dos quais apontaríamos, a título de exemplo, a Directiva 2001/42, de 27 de Junho de 2001, relativa à avaliação dos efeitos de determinados planos e programas no ambiente - que visaram dar uma resposta aos crescentes episódios devastadores que vários incidentes (o rebentamento de um tanque de decantação que continha cianeto de sódio numa mina de ouro, da empresa Aurul, em Baia Marte, Roménia, a 30 de Janeiro de 2000 é apenas um dos muitos exemplos) -, movimento esse que culminou com a primeira Directiva destinada à prevenção de um risco tradicionalmente considerado natural e não antropogénico: a Directiva 2007/60, de 23 de Outubro, relativa à prevenção de riscos de inundação[23].

            Contudo, parece-nos que o momento mais relevante em matéria de clarificação do princípio da precaução, a nível europeu, ocorre em Fevereiro de 2000, com a publicação da Comunicação da Comissão Europeia Relativa ao Princípio da Precaução – COM (2000)1 final, Bruxelas, de 2 de Fevereiro de 2000 – cujos objectivos são, precisamente, os de clarificar o principio da precaução na prevenção de riscos e estabelecer directrizes para a sua aplicação[24]; uma espécie de «interpretação ausência» deste princípio[25].
           
            Contudo, a magna quaestio é a seguinte: qual a força jurídica do princípio da precaução? É que a resposta a esta questão permite-nos dar uma resposta definitiva sobre a sua aplicabilidade, ou não - e consequente autonomia no plano normativo – nos ordenamentos jurídicos nacionais (que, como vimos, Carla Amado Gomes rejeita). É isso que procuraremos fazer de seguida.

Assim, e dado que, desde 1992, o princípio da precaução se encontra positivado, ele tem vindo a ganhar uma força jurídica considerável, que não pode – nem deve – passar despercebida. A esse respeito, é importante notar - tal como o faz Alexandra Aragão – que o princípio da integração, enquanto princípio geral do Direito Europeu (e sendo a integração ambiental uma das várias vertentes europeias do principio da integração), impõe que os princípios ambientais devam ser respeitados no âmbito das restantes políticas europeias (cfr. art. 11.º TFUE)[26]. Nesta medida, só é possível ter em consideração o ambiente se os respectivos princípios ambientais fundamentais forem respeitados no âmbito das políticas europeias: é o caso, nomeadamente, do princípio da precaução, que se encontra citado, como nos mostra esta Autora, em 76 actos jurídicos de Direito Europeu, bem como 255 outros actos que, ou mencionam o princípio, ou mencionam, pelo menos, «estratégias precaucionais»[27]. Aliás, o princípio da precaução foi expressamente considerado como um princípio geral de Direito Comunitário, pelo Tribunal Europeu de Primeira Instância, em 2002, no caso Artegodan, considerando-se nessa decisão que, por ser um princípio geral de Direito Comunitário, se «exige que as autoridades competentes tomem medidas para prevenir determinados riscos potenciais para a saúde pública, a segurança e o ambiente, dando precedente às exigências relacionadas com a protecção desses interesses em relação aos interesses económicos»[28].

            Considera também  Alexandra Aragão que, correctamente interpretado, o princípio da precaução possui força vinculativa também em relação aos Estados-Membros, que devem aplicar, tanto as directivas, como o direito nacional e transposição, à luz os princípios informadores de política ambiental europeia: o que, como vimos, não parece de ser sequer discutível[29]. Esta conclusão retira-se, com efeito, de acordo com um raciocínio estabelecido por Alan Doyle e Tom Carney, seguido pela Autora, e que é o seguinte: De acordo com a forma segundo a qual o anterior art. 130.º-R estava elaborado, a CE só “contribuía” para os objectivos ambientais, mas não assumia responsabilidades quanto à prossecução desses mesmos objectivos; ora, nesse sentido, as directivas, para serem correctamente aplicadas, exigem que, para além da interpretação do seu conteúdo normativo, se tenha em consideração, na interpretação das mesmas, o contexto do preceito jus-comunitário que atribui competências em matéria ambiental às variadas instituições europeias, onde se inclui – pasme-se! - o art. 130º-R (actual art. 192.º TFUE). Nesse sentido, a não consideração, pelas autoridades nacionais, dos princípios estabelecidos nessa sede, consubstancia uma violação do dever de colaboração com as instituições europeias; entendimento, aliás, reforçado no pós-Tratado de Lisboa, fruto da nova redacção do art. 4.º, n.º 3 TUE (principio da cooperação leal), que consagra de forma assertiva o cariz executivo deste princípio, na medida em que se estabelece que «Os Estados-membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos tratados ou resultantes dos actos das instituições da União (itálicos nossos)»[30].

Nessa medida, independentemente da consagração do princípio por iniciativa legislativa, ou recepção do princípio por dever do cumprimento da obrigação de transposição de directivas europeias, ele vigora e é directamente aplicável na ordem jurídica interna portuguesa, enquanto princípio geral de Direito da União Europeia [31].
           
            A este facto se junta outro, também apontado por Alexandra Aragão noutra sede[32] e que é o seguinte: o dever de aplicar, em Portugal, o princípio da precaução, decorre tanto do próprio Direito Interno, como do Direito Europeu: isto porque, com efeito, encontramos algumas consagrações autónomas do principio da precaução que derivam da iniciativa do legislador português, tais como a Lei de Bases da Protecção Civil (Lei 27/2006, nomeadamente o seu art. 5.º, c) ) ou a Lei da Conservação da Natureza e Biodiversidade (art. 4.º, e) do DL 142/2008); Ora, ao consagrar este princípio de forma autónoma - portanto, sem que tal resulte de um dever de transposição - estaremos perante consagrações legais autónomas do princípio da precaução. Mas também encontramos – e este é o ponto decisivo – vários instrumentos que servem como vias de entrada deste principio na ordem jurídica portuguesa: seguindo ainda Alexandra Aragão podemos encontrar três, a saber:

a)       Desde logo, um regulamento que - consagrando amplamente a matéria do princípio da precaução – é directamente aplicável segundo a aplicação das regras gerais de Direito da União Europeia: o Regulamento 178/2002, sobre segurança alimentar;
b)       Em segundo lugar, existe também uma obrigação de transposição de directivas: a esse respeito, podem referir-se regimes legais que resultam de transposições de directivas nas quais o princípio da precaução tem um papel decisivo: tal é o caso da Lei da Água (L 58/2005), que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 2000/60, de 23 de Outubro;
c)        Em terceiro lugar, enquanto princípio geral de Direito da União Europeia, o princípio vigora internamente e é directamente aplicável nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros[33].

Tendo em conta ambos os argumentos aduzidos ( quer a favor, quer contra a autonomia e vigência do princípio da precaução na ordem jurídica interna portuguesa) somos levados a seguir a orientação defendida por Alexandra Aragão. É que, desde logo, o facto, apontado por Carla Amado Gomes, de não se ter em conta qualquer tipo de risco (como demonstraremos infra) não significa que não se possa retirar sentido útil (e autónomo do principio): vigorando para situações em que não existe certeza cientifica do risco, esse mesmo facto distingue inexoravelmente o seu campo de aplicação face ao princípio da prevenção: é que naquele, e não neste, se tutelam situações de probabilidade que não são, contudo, de «irrealismo» algum, devido ao facto de se estabelecerem critérios que balizam a intervenção deste princípio. E, note-se, a vigência (nos termos demonstrados) deste princípio em sede europeia faz com que não tenhamos que procurar elementos na nossa ordem jurídica para legitimar a sua vigência. 

    Em suma, a existência de critérios claros de aplicação deste princípio faz com que não haja sentido em dizer-se que estamos a aplicar, de forma fundamentalista, o valor ambiente acima de quaisquer outros interesses económico-socialmente atendíveis. São esses critérios de aplicação que daremos conta de seguida.

 §2. Os pressupostos de aplicação do princípio da precaução

Tendo nós concluído pela autonomia e aplicabilidade do princípio da precaução na ordem jurídica portuguesa, cabe verificar em que termos é que este princípio se aplica. E neste campo, seguindo, mais uma vez, a lição de Alexandra Aragão[34], há que distinguir dois grandes momentos lógicos, que contém, neles, diversas «sub-fases», se assim nos é permitido dizer. Com efeito, existem, desde logo, dois pressupostos de aplicação do princípio da precaução: a existência de um risco e o facto de haver incerteza científica sobre o mesmo. Depois, num segundo momento lógico – rectius, apurando nós que estamos perante situações subsumíveis à aplicação deste princípio – seguir-se-á o processo de aplicação do princípio da precaução, que obedece a três grandes fases: a ponderação de vantagens e inconvenientes da acção pretendida (1), a avaliação da aceitabilidade social dos riscos causa (2), e a adopção de medidas precaucionais, adequadas e proporcionais (3). Analisemos, ainda que de forma algo sumária devido ao escopo interventivo desta intervenção, estes passos.

§2.1. A existência de um risco

Em primeiro lugar, é necessário, como vimos, que estejamos perante uma situação em que existam riscos. Ora, o princípio da precaução destina-se, sobretudo, a regular os chamados novos riscos ambientais, que se caracterizam por ser riscos globais, retardados e irreversíveis. Quanto à característica da globalidade, significa que o risco em causa opera em larga escala, com magnitude tal que pode abranger largas e vastas regiões do planeta (devendo, aliás,  ter-se em atenção que o crescente crescimento e globalização do consumo levam a uma massificação dos riscos, que podem, dessa forma, atingir a escala planetária). Exemplo deste tipo de risco é, entre tantos outros, o do clorofluorcarbono (vulgo CFC), cujo efeito nefasto no aumento do buraco da camada do ozono, resultado da grande quantidade de emissão deste gás é sobejamente conhecido. Aliás, o facto de estas partículas perdurarem ao longo de décadas também permite a sua classificação como risco retardado[35]. Por outro lado, temos os riscos retardados, expressão que visa identificar aqueles casos em que o risco em causa se desenvolve lentamente, ao longo de décadas ou séculos, e que levam gerações a tornarem-se efectivos, altura em que, porém, têm consequências catastróficas, fruto da sua irreversibilidade e extensão. Aliás, o conceito de «crescimento exponencial» é bem visível na charada do nenúfar no lago que dobra o seu tamanho todos os dias e que, sabendo-se que demorará 30 dias a preencher o lago, se decide agir apenas quando este tenha ocupado metade do lago, o que sucederá no 29.º dia, mostrando a importância de uma acção atempada e, sobretudo, visando a precaução do risco. Exemplo deste tipo de riscos é o dos poluentes orgânicos persistentes (POP), [36]. Por último, a irreversibilidade diz respeito aos riscos que, a serem concretizados, terão consequências permanentes ou, pelo menos, duradouras, de forma tal que se podem considerar irreversíveis à escala humana; são exemplos deste tipo de risco os Gases com Efeito de Estufa (GEE)[37].

§2.2. A existência de incerteza científica

Conforme se disse, o segundo pressuposto de aplicação do princípio da precaução é a existência de uma incerteza científica: por isso é que, como nota Alexandra Aragão, «uma abordagem precaucional implica sempre conjecturas e “construção de cenários”»[38]. Com efeito, a incerteza pode ser relativa a três tipos de situações: A primeira, nos casos em que existem danos reais e conhecidos, mas se desconhece a causa; a segunda, nos casos que há uma causa hipotética para os danos existentes, mas esse nexo não é claro; e a terceira, em que não há sequer um dano confirmado, havendo apenas suspeitas de saber se houve dano ou não. Neste último caso, a invocação do princípio da precaução só se justifica quando, não havendo danos comprovados e associados a determinado produto ou actividade, houver uma ainda assim uma  probabilidade de estarem relacionados. Apesar de Alexandra Aragão falar numa probabilidade mínima, apelando ao conceito de verosimilhança, parece preferível a opção da Comissão Europeia de exigir a presença de  “motivos razoáveis”, sob pena de «se deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta», no sentido de tornar demasiado ampla a aplicação de um princípio aplicável, per si, a situações em que não existem certezas[39].

§2.3. O Processo de Aplicação do Princípio da Precaução

Conforme referimos supra, o processo de aplicação do princípio da precaução obedece a três momentos principais, que dizem respeito à ponderação entre vantagens e inconvenientes da acção pretendida, à avaliação da aceitabilidade social dos riscos envolvidos, e a escolha de medidas precaucionais adequadas e proporcionais. Vejamos, então, cada um desses momentos.

§2.3.1. Ponderação de vantagens e inconvenientes da acção pretendida

Este primeiro momento de ponderação (que deve ser norteado pelo princípio da eficácia) é de extrema importância, já que, não raro, os produtos, tecnologias ou actividades que envolvem riscos de grande magnitude, comportam também eles enormes vantagens, quer sociais, quer económicas, o que muitas vezes coloca os decisores públicos perante um «dilema paralisante»[40], apesar de o facto de os produtos ou actividades actuais que comportam grandes danos ambientais também poder ser visto pela inversa: têm benefícios no presente, mas prejuízos (elevadíssimos, diga-se) no futuro. É sob este pano que temos que analisar a questão: Ou seja, é através da comparação de todas as vantagens e desvantagens que deve fazer-se uma ponderação das várias realidades em jogo, para assim determinar qual prevalece. Isto, diga-se, através de recursos que permitam fazê-lo de forma transparente. E existem já, no nosso ordenamento jurídico,  instrumentos de ponderação úteis para o efeito: entre eles, o nosso muito conhecido Regime de Avaliação do Impacte Ambiental (RAIA), regulado pelo DL 151-B/2013), que, precisamente, analisa, numa fase anterior  à execução de uma actividade, o seu impacto ambiental para, com base nesse juízo, a proibir (em caso de DIA desfavorável) ou, impondo alterações (DIA favorável condicionada) ou não (DIA favorável), aceitá-la.

§2.3.2. Avaliação da Aceitabilidade Social dos Riscos

Relativamente a este segundo momento, deve referir-se que, para a verificação das vantagens  e desvantagens, por um lado, e a verificação dos níveis socialmente adequados de protecção, por outro, a participação pública é essencial, devendo ela ser ocorrer nos estágios primários do procedimento, bem como envolvendo todas as partes interessadas: daí que Alexandra Aragão fale, a propósito, numa participação precoce e alagada[41]. Contudo, esta percepção social do risco (de que a Comissão deu conta na sua Comunicação de 2000), deve ser doseada, para que não exista uma influencia demasiadamente marcada de percepções sociais de riscos (que podem até ter cariz discriminatório) sobre os órgãos decisórios. Desta forma, o nível adequado de protecção «é a materialização das presumíveis expectativas das gerações futuras, e deve ser definido pelos poderes políticos, com base noutros elementos para além das opiniões do público», devendo notar-se que, se «a avaliação do risco é eminentemente científica, a definição da aceitabilidade do risco, e consequentemente do nível adequado de proteção, é uma decisão essencialmente ética e política», como refere Alexandra Aragão[42].

§2.3.3. Escolha de Medidas Precaucionais Adequadas e Proporcionais

            Como último estágio do procedimento de aplicação do princípio da proporção exige-se que as medidas precaucionais adoptadas sejam adequadas, por um lado, e proporcionais, por outro. Como conseguir isto? É que a intensidade das medidas precaucionais pode ter um efeito negativo, na medida em que, com o tempo, se o risco não se verificar, existirá necessariamente uma maior descredibilização das estratégias precaucionais[43]. Todavia, este objectivo é prosseguido através da delimitação dos termos em que são aplicadas as decisões precaucionais, e que se faz nos seguintes termos, sendo aqui seguida a metodologia de Alexandra Aragão[44]:

i)                     Devem ser tomadas medidas que sejam reputadas como urgentes. De facto, apenas na presença de riscos ambientais globais, retardados, e irreversíveis, é que se explica a necessidade de tomar, de forma urgente, medidas precaucionais. Numa palavra, «a gravidade das consequências explica a urgencia das medidas evitatórias».

ii)                   As medidas tomadas nesta sede devem, sempre, ser medidas provisórias; com efeito, o princípio da precaução pressupõe, como se tem vindo a demonstrar, situações em que se tomam decisões no pressuposto e em função da incerteza. Donde, a susceptibilidade de suspensão, ou de revisão (devendo, aliás, ser revistos de forma periódica relativamente curta, ou sempre que surjam novos dados científicos) se afigurar como uma característica marcadamente intrínseca deste tipo de medidas, uma vez que, atenta a sua própria natureza, seria manifestamente infundada a aplicação de medidas com cariz definitivo;
iii)                  As medidas em causa devem ser proporcionais, no sentido de que devem ser tidos em consideração os elementos já considerados de vantagens e desvantagens que decorrem de uma possível autorização da actividade, por um lado, e da protecção daquilo que se considera ser adequado, por outro. No fundo, a questão será analisada no plano da eficácia: se, por exemplo, os riscos de danos ambientais forem mínimos face às vantagens (nomeadamente económicas) de uma determinada actividade, ela deverá ser permitida, um pouco à semelhança do que acontece em sede de RAIA[45].


[1] Aragão, Mónica, Princípio da Precaução: manual de instruções, in Revista do CEDOUA, ano 11, n.º 2 (2008), pp. 9 e ss.
[2] Aragão, Mónica Op. Cit., loc. cit.
[3] «A política da União no domínio do ambiente terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador» (sublinhados nossos).
[4] Dando conta desta dificuldade, Amado Gomes, Carla, A Prevenção à Prova no Direito do Ambiente. Em especial, os actos autorizativos ambientais, Coimbra Editora, 2000, pp 32-33
[5] Amado Gomes, Carla, A Prevenção…cit, pp. 39 – 54 e infra, §1.1.
[6] Cfr., com efeito, falando do «mais recente princípio do Direito do Ambiente», Cláudia Maria Cruz dos Santos / José Eduardo de Oliveira Figueiredo Dias / Maria Alexandra de Sousa Aragão (Coord. Científica J.J. Gomes Canotilho), Introdução ao Direito do Ambiente, Universidade Aberta, 1998, p. 48, ou da «mais recente aquisição principiológica do Direito do Ambiente», Carla Amado Gomes, A Prevenção…cit., p.28.
[7]  Gomes Canotilho, J.J. (Coord.), Introdução…cit., pp. 44-46.
[8] Gomes Canotilho, J.J. (Coord.), Introdução…cit., Loc. Cit.
[9] Aragão, Alexandra, Aplicação Nacional do Princípio da Prevenção, in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, p. 162.
[10] Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., p. 34.
[11]  Gomes Canotilho, J.J. (Coord.), Introdução…cit., p. 49.
[12]  Gomes Canotilho, J.J (Coord.), Introdução…cit.., Loc.Cit. Cfr., ainda, falando nesta inversão do ónus da prova, Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., p. 29.
[13]  Gomes Canotilho (Coord.), J.J. Introdução…cit., Loc. Cit.
[14] Pereira da Silva, Vasco, Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 63-83.
[15] Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., p. 35.
[16]  Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., p.39.
[17] Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit.,Loc. Cit.
[18] Amado Gomes, Carla Prevenção…cit., p. 40.
[19] Amado Gomes, Carla Prevenção…cit., Loc. Cit.
[20] Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., p. 54
[21] Amado Gomes, Carla, Prevenção…cit., pp. 39-54.
[22] Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias do Princípio da Precaução, in RFDUP, ano 7, 2010, pp. 245 – 246.
[23] Para uma visão ampla dos vários acontecimentos em causa, e das respectivas respostas a nível de Direito Comunitário, cfr. Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., pp. 247 – 250. Aliás, como nota esta Autora, Op. Cit., p. 250, «a conclusão a retirar é a de que, face à crescente dificuldade em distinguir entre acidentes naturais e antrópicos a perspetiva europeia de gestão de riscos tem evoluído para uma abordagem conjunta dos riscos, seja qual for a sua origem direta», solução visível, desde logo, no art. 196.ºTFUE (sublinhados nossos).
[24] Aragão, Alexandra, Direito Comunitário do Ambiente, in Cadernos CEOUA, Almedina, p. 15
[25] A expressão é de Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 252.
[26] Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 253-254.
[27] Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., Loc. Cit.
[28] Processos Apensos T-24/2000, T-76/2000, T-83/2000 to T- 85/2000, T-132/2000, T-137/2000 e T-141/2000, com acórdão de 26 de Novembro de2002, apud Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., loc. Cit..
[29] Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 254.
[30]  Alan Doyle / Tom Carney, Precaution and Prevention: Giving Direct Effect to Article 130R Without Direct Effect, in European Environmental Law Review, vol. 8, n.º 2, February 1999, pp. 44-47, apud Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 254 – 255.
[31] Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., Loc. Cit.
[32] Aragão, Alexandra, Aplicaçao Nacional…cit., p. 159 e ss.
[33] Aragão, Alexandra, Aplicação Nacional…cit., p. 159 e ss
[34] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit., p. 13 e ss. Cfr., ainda, Aragão, Alexandra, Aplicação Nacional…cit., pp. 161 e ss e Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 258 e ss.
[35] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit., pp. 22 e 24.
[36] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit, Loc. Cit.
[37] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit, Loc. Cit. e p.25.
[38] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit, p. 32.
[39]  Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit., p. 34-36.
[40] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 38.
[41] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 44.
[42] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p.49. Cfr., também, pp. 44-48.
[43] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p.50.
[44] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 50-53.
[45] Aragão, Alexandra, Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 51.





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Bibliografia:

Gomes, Carla Amado
- A Prevenção à Prova no Direito do Ambiente. Em especial, os Actos Autorizativos Ambientais, Coimbra, Coimbra Editora, 2000

Aragão, Maria Alexandra de Sousa
- Aplicação Nacional do Princípio da Precaução, in Colóquios 2011-2012  (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, pp. 159-185;
- Dimensões Europeias do Princípio da Precaução, in RFDUP, ano 7, 2010, pp. 245-291
- Direito Comunitário do Ambiente,Coimbra, Almedina, 2002;
- Princípio da Integração. Manual de Instruções, in Revista do CEDOUA, ano 11, n.º 2 (2008)

Canotilho, José Joaquim Gomes (Coord.)
- Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, Universidade Aberta, 1998

Pereira da Silva, Vasco
- Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002,


Renato Miguel da Silva Pires, aluno n.º 20814

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