§1. Considerações iniciais. O surgimento e
evolução do princípio da precaução
Os princípios são, como se sabe, de
extrema importância na interpretação e aplicação do Direito. E, de facto,
estará aqui em causa a análise mais detalhada – tanto nacional, como
internacional – de um dos princípios que rege em matéria ambiental: o princípio da precaução. A pergunta
logicamente seguinte é fácil de prever: o que é o princípio da precaução? E de
que forma o princípio da precaução se pode distinguir do princípio da
prevenção? São questões como estas que cuidaremos tratar neste estudo.
Como
nos mostra Alexandra Aragão[1],
apesar de ter já um antecedente nos anos 70 (nomeadamente, sob a pena de Hans
Jonas), é na década de 90 do séc. XX que o princípio da precaução
começa a ter maior reconhecimento: quer doutrinal, quer legal, através da sua
consagração em vários diplomas legislativos: à cabeça, a Declaração do Rio Sobre
Desenvolvimento e Ambiente (ONU) (princípio 15), a Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, entre
outros[2], bem como a nível europeu, nomeadamente, através do artigo 130-R TCE (que
passaria a ser o art. 174.º TCE após o Tratado de Amsterdão e é actualmente o art. 191.º TFUE, (Cfr. n.º 2)[3].
Contudo, e apesar de ser mencionado em vários instrumentos legislativos internacionais
ou de índole comunitária, tanto o seu conteúdo, como a sua autonomia [maxime, no ordenamento jurídico
português] são questões nebulosas, quer porque não existe ainda um consenso
sobre o rigoroso conceito de «precaução» a adoptar[4]
quer porque é discutível se este princípio vigora, ou não, na nossa ordem
jurídica[5].
São fundamentalmente estas duas questões que irão ser tratadas na nossa
intervenção.
§1.1.
O princípio da prevenção versus o
princípio da prevenção: Um conceito autónomo?
Antes
de saber se o princípio da precaução existe, enquanto tal, temos que saber a que é que ele se refere. É preciso notar que este princípio é, como
reconhece a generalidade da doutrina, uma aquisição relativamente recente do
Direito do Ambiente[6].
O que entender, então, por «precaução»? A dificuldade surge na medida em que
este princípio muitas vezes se confunde com outro princípio jus-ambiental: o da
prevenção. Isto porque tanto um
princípio, como outro, visam o reforço de actuações necessariamente anteriores (e, se possível, com efeitos extintivos)
à ocorrência de danos ambientais. Aliás, o princípio da prevenção tem como comando de acção precisamente o imperativo de, em
vez de contabilizar os danos e os reparar, se dever sobretudo evitar a ocorrência de danos, antes de
eles terem acontecido[7].
Isto porque, não raro, os danos gerados podem ser de restituição impossível, como será o caso (de escola) de extinção de uma espécie animal. Contudo, este princípio – o princípio da
prevenção – tem um traço que o distingue do princípio da precaução (que, tal
como este, impõe medidas de minoração dos riscos ambientais antes destes
acontecerem): é que este princípio implica a adopção de medidas anteriores à
ocorrência de um dano cuja origem é
conhecida[8];
por sua vez, no âmbito do princípio da precaução, lidamos com riscos hipotéticos ou potenciais. Isto significa que a distinção entre prevenção, por um lado, e precaução, por outro, se fará nos
seguintes termos: «a precaução destina-se a controlar riscos hipotéticos ou
potenciais, enquanto a prevenção visa evitar riscos comprovados. Por isso o
princípio da precaução é proactivo,
enquanto o princípio da prevenção é essencialmente
reactivo [itálicos nossos]», como muito bem refere Alexandra
Aragão[9].
De
facto, quer a gravidade, quer a irreversibilidade do dano ambiental em
causa são sujeitos à incerteza, o que
significa que, enquanto no domínio da prevenção estamos no domínio da
probabilidade, na precaução estamos perante situações de possibilidade [10].
Na verdade, este princípio tem, como pressuposto de aplicação, uma situação de incerteza, no sentido em que, nestes casos, o ambiente deve ter o benefício da dúvida, consubstanciado no estabelecimento de um nexo de causalidade entre uma certa actividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação ambiental:
no fundo, uma espécie de princípio in
dúbio pro ambiente, que, na dúvida relativa à perigosidade ambiental de
certa conduta, se decide a favor do ambiente e contra o presumível poluidor[11].
Ora, o estabelecimento desse nexo de
causalidade tem uma consequência adjectiva muito específica, que é a de o onus probandi da conformidade ambiental de uma certa actuação passar do Estado
ou potenciais poluídos para a entidade que pretende levar a cabo essa actividade; i.e., o presumível poluidor[12]. A dúvida sobre a perigosidade
de uma actividade para o ambiente pode resultar, de resto, de vários factores, nomeadamente a
não verificação de quaisquer danos por uma determinada actividade, que coexiste
com o receio (apesar da falta de
quaisquer provas científicas) de vir a ocorrer; havendo danos, as não o conhecimento científico sobre a sua especifica causa; ou, havendo dano, não haver provas científicas no sentido de
estabelecer um nexo de causalidade entre o dano ocorrido e a actividade concretamente exercida[13].
Contudo,
esta distinção realizada com base no tipo de risco em causa não é consensual na
nossa doutrina. Com efeito, Vasco Pereira da Silva evoca a
unidade deste conceito, i.e, para este Autor, precaução e prevenção fazem parte do
mesmo conceito; ou, se quisermos, a referência à precaução será entendida
apenas como uma referência ao princípio da precaução, lato sensu, apesar de a realidade internacional e comunitária
exigirem que tenhamos sempre em consideração esta distinção[14].
Também Carla
Amado Gomes revela uma opinião contrária a uma distinção
(atribuindo autonomia a cada um dos princípios, leia-se) entre os princípios da prevenção e precaução. E isto por um extenso
leque de argumentos.
Desde logo, a consideração (baseada no
facto de o princípio da precaução se fundar em possibilidades) de que,
interpretado restritivamente, o princípio da precaução levar a que todas as actuações que, com um grau de previsibilidade mínimo, pudessem lesar o ambiente, pudessem ser evitadas, salvo
havendo uma certeza quase absoluta sobre a sua inocuidade: ora, sendo tal
atitude «irrealista», a vertente maximalista
deste princípio não será operativa,
de onde decorrerá que:
a) Ou a intervenção ambiental apenas é
aceite havendo comprovação científica do risco (ou a alta probabilidade da sua
ocorrência) de lesão grave e irreversível, deixando neste caso de fazer sentido
uma distinção;
b) Ou a intervenção ambiental apenas é
aceitável, na ausência de certezas científicas sobre a possibilidade de dano,
devendo haver uma especial exigência de
ponderação dos interesses em causa[15].
No fundo, a visão de Carla
Amado Gomes reside no seguinte: traduzindo-se o princípio da
precaução, substancialmente, numa prevenção
qualificada agravada que faria
com que se proibisse uma actividade cujo efeito ambiental é desconhecido ou a
intervenção é legitimada com o fito de evitar um determinado efeito do qual
ainda não se tem a certeza, aceitar tal intervenção «precaucionista»
significaria fazer do ambiente um valor prevalecente em qualquer situação,
sendo superior aos demais valores objecto de ponderação, sem qualquer ponderação minimamente cuidada de outros interesses:
solução essa que, pelo seu «fundamentalismo», seria de rejeitar, ao que acresce
a verdadeira probatio diabolica
imposta no caso de se exigir ao presumível poluidor a prova da total inocuidade da sua actividade. Ora,
a questão reside, para Carla Amado Gomes, em saber se, no
nosso ordenamento jurídico, existe alguma norma constitucional que legitime
esta posição hierarquicamente superior do princípio da precaução. E se o
princípio da prevenção tem assento constitucional (art. 66.º, n.º 1, al. a) CRP), o mesmo não se poderia dizer do
princípio da precaução[16].
A
análise do princípio da precaução não pode, contudo, esquecer-se da vertente
jus-comunitária na matéria. Aliás, como referimos supra, o art. 191.º, n.º 2 TFUE rege na matéria, estabelecendo
claramente a existência de um princípio da precaução. Por isso, a questão está,
como bem intui Carla Amado Gomes, em saber se o princípio da precaução é dotado de
efeito directo[17].
Essa questão será por nós tratada em §1.2., mas, para o que aqui releva, Carla
Amado Gomes sustenta que o preceito jus-comunitário não tem aplicabilidade directa na nossa
ordem jurídica: isto porque, na sua opinião, para além de ser duvidoso que um
princípio cujo conteúdo é controvertido no Direito Internacional (já que a sua
formulação é diferente em diversos instrumentos legais) possa adquirir, no
Direito Comunitário, contornos tão «claros, precisos e incondicionais, que
vinculem os Estados-Membros», não sendo, aliás, «líquido que dum princípio
possa sair uma obrigação clara, precisa, e incondicional»[18]
. Indiscutível é, sim, a vinculação da CE a este domínio na política ambiental,
bem como a obrigação de os Estados-Membros respeitarem a legislação comunitária
emitida nesse âmbito em homenagem ao princípio da solidariedade (antigo art.
10.º, TCE), pelo que, a haver vinculação dos Estados Membros, tal será pela via
dos actos normativos concretos, e não por aplicação directa do (agora) artigo
192.º[19].
Ora,
essa conclusão leva Carla Amado Gomes a referir que, não
havendo adstrição directa do Estado português ao princípio da precaução pela via
comunitária, é necessária uma análise das várias normas constitucionais
ambientais, das quais retira da exigência de um entendimento qualificado do
princípio da prevenção, o princípio da precaução: com efeito, a Autora recorre,
com esse intuito, aos arts. 9.º/ e),
66.º, n.º 2, 81.º, l) e m), entre outros, de onde retira o
seguinte: apesar de não haver consagração explícita do princípio da precaução, isso não impede que o legislador esteja vinculado a um «dever de ponderação agravada do interesse ambiental, por força da
leitura sistemática da Lei
Fundamental e do imperativo de proporcionalidade»[20].
Por a argumentação estar apresentada de forma bastante clara, e dado o escopo
necessariamente breve desta intervenção, para lá remetemos[21].
Contudo,
e apesar da boa argumentação, não concordamos com Carla Amado Gomes
quando esta autora nega autonomia ao princípio da precaução, precisamente no pressuposto lógico da tese que defende,
e que reside na inaplicabilidade directa do art. 192.º TFUE. É isso que tentaremos
demonstrar, a par de uma breve introdução do princípio da precaução no Direito
da União Europeia, em §1.2.
§1.2.
O princípio da precaução no «Sofá da Europa»: um princípio presenta na nossa
ordem jurídica?
O princípio da precaução conta já com
alguma aplicação em sede de Direito da União Europeia. Com efeito, e apesar de
só ter conhecido consagração expressa com o Tratado de Maastricht, a gestão de riscos ambientais teve início
formal anterior: nomeadamente, com uma Directiva (A Directiva 82/501, de 24 de
Junho, também conhecida como Directiva Seveso), que tinha como objectivo de prevenir acidentes industriais que
envolveram substâncias químicas perigosas, em resposta ao grave acidente
industrial ocorrido nas fábricas Industrie
Chimiche Meda Società Azionara, em 10 de Julho de 1976[22].
Para além dessas medidas, previam-se, grosso
modo, sistemas de troca de informações, que viram o seu âmbito de aplicação
aumentado com a revisão desta directiva, dando origem à Directiva Seveso II (Directiva 96/82), a par de uma
série de outros instrumentos regulativos, dos quais apontaríamos, a título de
exemplo, a Directiva 2001/42, de 27 de Junho de 2001, relativa à avaliação dos efeitos de determinados planos e
programas no ambiente - que visaram
dar uma resposta aos crescentes episódios devastadores que vários incidentes (o
rebentamento de um tanque de decantação que continha cianeto de sódio numa mina
de ouro, da empresa Aurul, em Baia
Marte, Roménia, a 30 de Janeiro de 2000 é apenas um dos muitos exemplos) -,
movimento esse que culminou com a primeira Directiva destinada à prevenção de um
risco tradicionalmente considerado natural
e não antropogénico: a Directiva 2007/60, de 23 de Outubro, relativa à prevenção
de riscos de inundação[23].
Contudo, parece-nos que o momento
mais relevante em matéria de clarificação do princípio da precaução, a nível
europeu, ocorre em Fevereiro de 2000, com a publicação da Comunicação da Comissão Europeia Relativa ao Princípio da Precaução
– COM (2000)1 final, Bruxelas, de 2 de Fevereiro de 2000 – cujos objectivos são,
precisamente, os de clarificar o principio da precaução na prevenção de riscos
e estabelecer directrizes para a sua aplicação[24]; uma espécie de «interpretação ausência» deste
princípio[25].
Contudo, a magna quaestio é a seguinte: qual
a força jurídica do princípio da precaução? É que a resposta a esta questão
permite-nos dar uma resposta definitiva sobre a sua aplicabilidade, ou não - e
consequente autonomia no plano normativo – nos ordenamentos jurídicos nacionais
(que, como vimos, Carla Amado
Gomes rejeita). É isso que procuraremos fazer de seguida.
Assim, e dado que, desde 1992, o princípio da precaução se
encontra positivado, ele tem vindo a ganhar uma força jurídica considerável,
que não pode – nem deve – passar despercebida. A esse respeito, é importante notar
- tal como o faz Alexandra Aragão – que o princípio da integração, enquanto princípio geral do
Direito Europeu (e sendo a integração ambiental uma das várias vertentes
europeias do principio da integração), impõe que os princípios ambientais devam
ser respeitados no âmbito das restantes políticas europeias (cfr. art. 11.º
TFUE)[26].
Nesta medida, só é possível ter em consideração o ambiente se os respectivos princípios ambientais fundamentais forem respeitados no âmbito das políticas europeias: é o caso, nomeadamente, do princípio da precaução, que se encontra
citado, como nos mostra esta Autora, em 76 actos jurídicos de Direito Europeu,
bem como 255 outros actos que, ou mencionam o princípio, ou mencionam, pelo
menos, «estratégias precaucionais»[27].
Aliás, o princípio da precaução foi expressamente
considerado como um princípio geral de Direito Comunitário, pelo Tribunal
Europeu de Primeira Instância, em 2002, no caso Artegodan, considerando-se nessa decisão que, por ser um princípio geral de Direito Comunitário, se «exige que as autoridades competentes tomem
medidas para prevenir determinados riscos potenciais para a saúde pública, a
segurança e o ambiente, dando precedente às exigências relacionadas com a protecção desses interesses em relação aos interesses económicos»[28].
Considera também Alexandra Aragão que, correctamente interpretado, o princípio
da precaução possui força vinculativa
também em relação aos Estados-Membros, que devem aplicar, tanto as directivas, como o direito nacional e transposição, à
luz os princípios informadores de política ambiental europeia: o que, como
vimos, não parece de ser sequer discutível[29].
Esta conclusão retira-se, com efeito, de acordo com um raciocínio estabelecido
por Alan Doyle
e Tom Carney,
seguido pela Autora, e que é o seguinte: De acordo com a forma segundo a qual o
anterior art. 130.º-R estava elaborado, a CE só “contribuía” para os objectivos ambientais, mas não assumia responsabilidades quanto à prossecução desses mesmos objectivos; ora, nesse sentido, as directivas,
para serem correctamente aplicadas, exigem que, para além da interpretação do
seu conteúdo normativo, se tenha em consideração, na interpretação das mesmas,
o contexto do preceito
jus-comunitário que atribui competências em matéria ambiental às variadas
instituições europeias, onde se inclui – pasme-se! - o art. 130º-R (actual art.
192.º TFUE). Nesse sentido, a não consideração, pelas autoridades nacionais,
dos princípios estabelecidos nessa sede, consubstancia uma violação do dever de colaboração com as instituições europeias;
entendimento, aliás, reforçado no pós-Tratado de Lisboa, fruto da nova redacção do art. 4.º, n.º 3 TUE (principio da cooperação
leal), que consagra de forma assertiva o cariz executivo deste princípio, na medida em que se estabelece que «Os
Estados-membros tomam todas as
medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações
decorrentes dos tratados ou resultantes
dos actos das instituições da União (itálicos nossos)»[30].
Nessa medida, independentemente da consagração do princípio
por iniciativa legislativa, ou recepção do princípio por dever do cumprimento da
obrigação de transposição de directivas europeias, ele vigora e é directamente aplicável na ordem jurídica interna portuguesa, enquanto princípio geral de Direito da União Europeia
[31].
A este facto se junta outro, também apontado
por Alexandra Aragão
noutra sede[32], e que é o seguinte: o
dever de aplicar, em Portugal, o princípio da precaução, decorre tanto do próprio
Direito Interno, como do Direito Europeu: isto porque, com efeito, encontramos
algumas consagrações autónomas do
principio da precaução que derivam da iniciativa do legislador português, tais
como a Lei de Bases da Protecção Civil (Lei 27/2006, nomeadamente o seu art.
5.º, c) ) ou a Lei da Conservação da
Natureza e Biodiversidade (art. 4.º, e)
do DL 142/2008); Ora, ao consagrar este princípio de forma autónoma - portanto,
sem que tal resulte de um dever de transposição - estaremos perante
consagrações legais autónomas do princípio
da precaução. Mas também encontramos – e este é o ponto decisivo – vários
instrumentos que servem como vias de
entrada deste principio na ordem jurídica portuguesa: seguindo ainda Alexandra Aragão
podemos encontrar três, a saber:
a)
Desde logo, um regulamento que - consagrando amplamente a matéria do princípio da
precaução – é directamente aplicável segundo a aplicação das regras gerais de Direito da União Europeia: o
Regulamento 178/2002, sobre segurança alimentar;
b)
Em segundo lugar, existe também uma
obrigação de transposição de directivas:
a esse respeito, podem referir-se regimes legais que resultam de transposições de directivas nas quais o princípio da precaução tem um papel decisivo: tal é o
caso da Lei da Água (L 58/2005), que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 2000/60, de 23 de Outubro;
c)
Em terceiro lugar, enquanto princípio
geral de Direito da União Europeia, o princípio vigora internamente e é directamente aplicável nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros[33].
Tendo
em conta ambos os argumentos aduzidos ( quer a favor, quer contra a autonomia e
vigência do princípio da precaução na ordem jurídica interna portuguesa) somos
levados a seguir a orientação defendida por Alexandra Aragão. É que, desde logo, o facto, apontado
por Carla Amado Gomes,
de não se ter em conta qualquer tipo de risco (como demonstraremos infra) não significa que não se possa
retirar sentido útil (e autónomo do principio): vigorando para situações em que
não existe certeza cientifica do risco, esse mesmo facto distingue
inexoravelmente o seu campo de aplicação face ao princípio da prevenção: é que naquele,
e não neste, se tutelam situações de probabilidade
que não são, contudo, de «irrealismo» algum, devido ao facto de se
estabelecerem critérios que balizam a
intervenção deste princípio. E, note-se, a vigência (nos termos demonstrados)
deste princípio em sede europeia faz com que não tenhamos que procurar
elementos na nossa ordem jurídica para legitimar a sua vigência.
Em suma, a
existência de critérios claros de aplicação deste princípio faz com que não
haja sentido em dizer-se que estamos a aplicar, de forma fundamentalista, o
valor ambiente acima de quaisquer outros interesses económico-socialmente
atendíveis. São esses critérios de aplicação que daremos conta de seguida.
§2. Os pressupostos de aplicação do princípio
da precaução
Tendo nós concluído pela autonomia e
aplicabilidade do princípio da precaução na ordem jurídica portuguesa, cabe
verificar em que termos é que este princípio se aplica. E neste campo, seguindo,
mais uma vez, a lição de Alexandra Aragão[34],
há que distinguir dois grandes momentos lógicos, que contém, neles, diversas
«sub-fases», se assim nos é permitido dizer. Com efeito, existem, desde logo,
dois pressupostos de aplicação do
princípio da precaução: a existência de um risco
e o facto de haver incerteza científica sobre
o mesmo. Depois, num segundo momento lógico – rectius, apurando nós que estamos perante situações subsumíveis à
aplicação deste princípio – seguir-se-á o processo
de aplicação do princípio da precaução, que obedece a três grandes fases: a
ponderação de vantagens e inconvenientes da acção pretendida (1), a avaliação da
aceitabilidade social dos riscos causa (2), e a adopção de medidas precaucionais, adequadas e proporcionais (3). Analisemos, ainda que de forma
algo sumária devido ao escopo interventivo desta intervenção, estes passos.
§2.1.
A existência de um risco
Em primeiro lugar, é necessário, como
vimos, que estejamos perante uma situação em que existam riscos. Ora, o princípio da precaução destina-se, sobretudo, a
regular os chamados novos riscos
ambientais, que se caracterizam por ser riscos globais, retardados e irreversíveis. Quanto à característica
da globalidade, significa que o risco
em causa opera em larga escala, com magnitude tal que pode abranger largas e
vastas regiões do planeta (devendo, aliás, ter-se em atenção que o crescente crescimento
e globalização do consumo levam a uma massificação dos riscos, que podem, dessa
forma, atingir a escala planetária).
Exemplo deste tipo de risco é, entre tantos outros, o do clorofluorcarbono
(vulgo CFC), cujo efeito nefasto no
aumento do buraco da camada do ozono, resultado da grande quantidade de emissão
deste gás é sobejamente conhecido. Aliás, o facto de estas partículas
perdurarem ao longo de décadas também permite a sua classificação como risco retardado[35]. Por outro lado, temos os riscos retardados, expressão que visa
identificar aqueles casos em que o risco em causa se desenvolve lentamente, ao
longo de décadas ou séculos, e que levam gerações a tornarem-se efectivos,
altura em que, porém, têm consequências catastróficas, fruto da sua irreversibilidade
e extensão. Aliás, o conceito de «crescimento exponencial» é bem visível na
charada do nenúfar no lago que dobra o seu tamanho todos os dias e que,
sabendo-se que demorará 30 dias a preencher o lago, se decide agir apenas
quando este tenha ocupado metade do lago, o que sucederá no 29.º dia, mostrando
a importância de uma acção atempada e, sobretudo, visando a precaução do risco. Exemplo
deste tipo de riscos é o dos poluentes orgânicos persistentes (POP), [36]. Por último, a irreversibilidade diz respeito aos riscos que, a serem
concretizados, terão consequências permanentes ou, pelo menos, duradouras, de forma tal que se podem
considerar irreversíveis à escala humana;
são exemplos deste tipo de risco os Gases com Efeito de Estufa (GEE)[37].
§2.2.
A existência de incerteza científica
Conforme se disse, o segundo pressuposto
de aplicação do princípio da precaução é a existência de uma incerteza
científica: por isso é que, como nota Alexandra Aragão,
«uma abordagem precaucional implica sempre conjecturas e “construção de
cenários”»[38].
Com efeito, a incerteza pode ser relativa a três tipos de situações: A
primeira, nos casos em que existem danos reais e conhecidos, mas se desconhece
a causa; a segunda, nos casos que há
uma causa hipotética para os danos existentes, mas esse nexo não é claro; e a
terceira, em que não há sequer um dano confirmado, havendo apenas suspeitas de
saber se houve dano ou não. Neste último caso, a invocação do princípio da
precaução só se justifica quando, não havendo danos comprovados e associados a
determinado produto ou actividade, houver uma ainda assim uma probabilidade de estarem relacionados. Apesar de Alexandra
Aragão falar numa probabilidade
mínima, apelando ao conceito de verosimilhança, parece preferível a opção
da Comissão Europeia de exigir a presença de “motivos razoáveis”, sob pena de «se deixar
entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta», no sentido de
tornar demasiado ampla a aplicação de um princípio aplicável, per si, a situações em que não existem
certezas[39].
§2.3.
O Processo de Aplicação do Princípio da Precaução
Conforme referimos supra, o processo de aplicação do princípio da precaução obedece a
três momentos principais, que dizem respeito à ponderação entre vantagens e inconvenientes da acção pretendida, à avaliação da aceitabilidade social dos
riscos envolvidos, e a escolha de
medidas precaucionais adequadas e proporcionais. Vejamos, então, cada um desses
momentos.
§2.3.1.
Ponderação de vantagens e inconvenientes da acção pretendida
Este primeiro momento de ponderação (que
deve ser norteado pelo princípio da eficácia)
é de extrema importância, já que, não raro, os produtos, tecnologias ou actividades que envolvem riscos de grande magnitude, comportam também eles
enormes vantagens, quer sociais, quer económicas, o que muitas vezes coloca os
decisores públicos perante um «dilema
paralisante»[40],
apesar de o facto de os produtos ou actividades actuais que comportam grandes
danos ambientais também poder ser visto pela inversa: têm benefícios no
presente, mas prejuízos (elevadíssimos, diga-se) no futuro. É sob este pano que temos que analisar a questão: Ou seja, é através da comparação de todas as vantagens e desvantagens que deve fazer-se uma ponderação das várias realidades em jogo, para assim determinar qual prevalece. Isto, diga-se, através de
recursos que permitam fazê-lo de forma transparente. E existem já, no nosso ordenamento jurídico, instrumentos
de ponderação úteis para o efeito: entre eles, o nosso muito conhecido
Regime de Avaliação do Impacte Ambiental (RAIA), regulado pelo DL 151-B/2013),
que, precisamente, analisa, numa fase anterior à execução de uma actividade, o seu impacto ambiental para, com base nesse juízo, a
proibir (em caso de DIA desfavorável) ou, impondo alterações (DIA favorável
condicionada) ou não (DIA favorável), aceitá-la.
§2.3.2.
Avaliação da Aceitabilidade Social dos Riscos
Relativamente a este segundo momento, deve
referir-se que, para a verificação das vantagens e desvantagens, por um lado, e a verificação dos
níveis socialmente adequados de protecção, por outro, a participação pública é
essencial, devendo ela ser ocorrer nos estágios primários do procedimento, bem
como envolvendo todas as partes interessadas: daí que Alexandra Aragão fale, a
propósito, numa participação precoce e
alagada[41].
Contudo, esta percepção social do risco (de que a Comissão deu conta na sua Comunicação
de 2000), deve ser doseada, para que não
exista uma influencia demasiadamente marcada de percepções sociais de riscos (que
podem até ter cariz discriminatório) sobre os órgãos decisórios. Desta forma, o
nível adequado de protecção «é a materialização das presumíveis expectativas das gerações futuras, e deve ser definido
pelos poderes políticos, com base noutros elementos para além das opiniões do
público», devendo notar-se que, se «a avaliação do risco é eminentemente científica,
a definição da aceitabilidade do risco, e consequentemente do nível adequado de
proteção, é uma decisão essencialmente ética
e política», como refere Alexandra
Aragão[42].
§2.3.3.
Escolha de Medidas Precaucionais Adequadas e Proporcionais
Como
último estágio do procedimento de aplicação do princípio da proporção exige-se
que as medidas precaucionais adoptadas sejam adequadas,
por um lado, e proporcionais, por
outro. Como conseguir isto? É que a intensidade das medidas precaucionais pode
ter um efeito negativo, na medida em
que, com o tempo, se o risco não se verificar, existirá necessariamente uma
maior descredibilização das
estratégias precaucionais[43].
Todavia, este objectivo é prosseguido através da delimitação dos termos em que são aplicadas as decisões precaucionais, e que se faz nos seguintes termos, sendo
aqui seguida a metodologia de Alexandra Aragão[44]:
i)
Devem
ser tomadas medidas que sejam reputadas como urgentes. De facto, apenas na presença de riscos ambientais
globais, retardados, e irreversíveis, é que se explica a necessidade de tomar,
de forma urgente, medidas precaucionais. Numa palavra, «a gravidade das consequências explica a urgencia das medidas evitatórias».
ii)
As
medidas tomadas nesta sede devem, sempre, ser medidas provisórias; com efeito, o princípio da precaução pressupõe, como
se tem vindo a demonstrar, situações em que se tomam decisões no pressuposto e
em função da incerteza. Donde, a susceptibilidade de suspensão, ou de revisão
(devendo, aliás, ser revistos de forma periódica relativamente curta, ou sempre que surjam novos dados científicos)
se afigurar como uma característica marcadamente intrínseca deste tipo de medidas, uma vez que, atenta a sua própria
natureza, seria manifestamente infundada a aplicação de medidas com cariz
definitivo;
iii)
As
medidas em causa devem ser proporcionais,
no sentido de que devem ser tidos em consideração os elementos já considerados
de vantagens e desvantagens que decorrem de uma possível autorização da actividade, por um lado, e da protecção daquilo que se considera ser adequado, por outro. No fundo,
a questão será analisada no plano da eficácia: se, por exemplo, os riscos de danos ambientais forem mínimos face às vantagens (nomeadamente económicas) de uma determinada actividade, ela deverá ser permitida, um pouco à semelhança do que acontece em sede de RAIA[45].
[1] Aragão,
Mónica, Princípio da
Precaução: manual de instruções,
in Revista do CEDOUA, ano 11, n.º 2 (2008),
pp. 9 e ss.
[2] Aragão,
Mónica Op. Cit., loc. cit.
[3] «A política da União no domínio do ambiente
terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado, tendo em conta a
diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á
nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção,
prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do
poluidor-pagador» (sublinhados nossos).
[4]
Dando conta desta dificuldade, Amado Gomes,
Carla, A Prevenção à Prova
no Direito do Ambiente. Em especial,
os actos autorizativos ambientais, Coimbra Editora, 2000, pp 32-33
[5] Amado
Gomes, Carla, A Prevenção…cit, pp. 39 – 54 e infra, §1.1.
[6]
Cfr., com efeito, falando do «mais recente princípio do Direito do Ambiente», Cláudia Maria Cruz dos Santos / José Eduardo
de Oliveira Figueiredo Dias / Maria Alexandra de Sousa Aragão
(Coord. Científica J.J. Gomes
Canotilho), Introdução ao
Direito do Ambiente, Universidade Aberta, 1998, p. 48, ou da «mais recente
aquisição principiológica do Direito do Ambiente», Carla Amado Gomes,
A Prevenção…cit., p.28.
[7] Gomes
Canotilho, J.J. (Coord.), Introdução…cit.,
pp. 44-46.
[8] Gomes Canotilho, J.J.
(Coord.), Introdução…cit.,
Loc. Cit.
[9] Aragão,
Alexandra, Aplicação
Nacional do Princípio da Prevenção, in Colóquios
2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal
Portuguesa), 2013, p. 162.
[10] Amado Gomes, Carla,
Prevenção…cit., p. 34.
[11] Gomes
Canotilho, J.J. (Coord.), Introdução…cit.,
p. 49.
[12] Gomes
Canotilho, J.J (Coord.), Introdução…cit..,
Loc.Cit. Cfr., ainda, falando nesta
inversão do ónus da prova, Amado Gomes, Carla,
Prevenção…cit., p. 29.
[13] Gomes
Canotilho (Coord.), J.J. Introdução…cit., Loc. Cit.
[14] Pereira da Silva,
Vasco, Verde Cor de Direito
- Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 63-83.
[16] Amado
Gomes, Carla, Prevenção…cit., p.39.
[17] Amado Gomes,
Carla, Prevenção…cit.,Loc. Cit.
[18] Amado Gomes,
Carla Prevenção…cit.,
p. 40.
[19] Amado Gomes,
Carla Prevenção…cit.,
Loc. Cit.
[20] Amado Gomes,
Carla, Prevenção…cit.,
p. 54
[21] Amado Gomes,
Carla, Prevenção…cit.,
pp. 39-54.
[22]
Aragão, Alexandra, Dimensões
Europeias do Princípio da Precaução,
in RFDUP, ano 7, 2010, pp. 245 – 246.
[23]
Para uma visão ampla dos vários
acontecimentos em causa, e das respectivas respostas a nível de Direito Comunitário,
cfr. Aragão, Alexandra, Dimensões
Europeias…cit., pp. 247 – 250. Aliás, como nota esta Autora, Op. Cit., p. 250, «a conclusão a retirar
é a de que, face à crescente dificuldade em distinguir entre acidentes naturais
e antrópicos a perspetiva europeia de gestão de riscos tem evoluído para uma abordagem conjunta dos riscos, seja qual for a sua origem direta»,
solução visível, desde logo, no art. 196.ºTFUE (sublinhados nossos).
[24] Aragão, Alexandra,
Direito Comunitário do Ambiente, in Cadernos CEOUA, Almedina, p. 15
[25] A expressão é de Aragão, Alexandra, Dimensões Europeias…cit., p. 252.
[26] Aragão, Alexandra,
Dimensões Europeias…cit., p. 253-254.
[27] Aragão, Alexandra,
Dimensões Europeias…cit., Loc. Cit.
[28] Processos Apensos T-24/2000, T-76/2000,
T-83/2000 to T- 85/2000, T-132/2000, T-137/2000 e T-141/2000, com acórdão de 26
de Novembro de2002, apud Aragão,
Alexandra, Dimensões Europeias…cit., loc. Cit..
[29] Aragão, Alexandra,
Dimensões Europeias…cit., p. 254.
[30] Alan Doyle / Tom Carney,
Precaution and Prevention: Giving Direct
Effect to Article 130R Without Direct Effect, in European Environmental Law Review, vol. 8, n.º 2, February 1999,
pp. 44-47, apud Aragão,
Alexandra, Dimensões
Europeias…cit., p. 254 – 255.
[31] Aragão, Alexandra,
Dimensões Europeias…cit., Loc. Cit.
[32] Aragão, Alexandra,
Aplicaçao Nacional…cit., p. 159 e ss.
[33] Aragão, Alexandra,
Aplicação Nacional…cit., p. 159 e ss
[34] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,
p. 13 e ss. Cfr., ainda, Aragão, Alexandra, Aplicação Nacional…cit., pp. 161 e ss e Aragão,
Alexandra, Dimensões
Europeias…cit., p. 258 e ss.
[35] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit., pp. 22 e 24.
[36] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit, Loc. Cit.
[37] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit, Loc. Cit. e p.25.
[38] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit, p. 32.
[39] Aragão,
Alexandra, Princípio da
Precaução. Manual…cit., p. 34-36.
[40] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 38.
[41] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 44.
[42] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p.49. Cfr., também, pp.
44-48.
[43] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p.50.
[44] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 50-53.
[45] Aragão, Alexandra,
Princípio da Precaução. Manual…cit.,p. 51.
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Bibliografia:
Bibliografia:
Gomes, Carla
Amado
- A Prevenção à Prova no Direito do
Ambiente. Em especial, os Actos Autorizativos Ambientais, Coimbra, Coimbra
Editora, 2000
Aragão, Maria
Alexandra de Sousa
-
Aplicação Nacional do Princípio da Precaução, in Colóquios
2011-2012 (Associação dos
Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, pp.
159-185;
-
Dimensões Europeias do Princípio da Precaução, in RFDUP, ano
7, 2010, pp. 245-291
- Direito Comunitário do
Ambiente,Coimbra,
Almedina, 2002;
- Princípio
da Integração. Manual de Instruções, in Revista
do CEDOUA, ano 11, n.º 2 (2008)
Canotilho, José
Joaquim Gomes (Coord.)
-
Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, Universidade Aberta, 1998
Pereira da
Silva, Vasco
- Verde
Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra,
Almedina, 2002,
Renato Miguel da Silva Pires, aluno n.º 20814
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