domingo, 13 de abril de 2014

O Direito dos Animais em análise no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2004

"Matar animais por desporto, prazer, aventura e pelas suas peles, é um fenómeno que é ao mesmo tempo cruel e repugnante. Não há justificação na satisfação de uma brutalidade dessas"
Dalai Lama

I. Introdução

            No presente ensaio iremos abordar o tema dos Direitos dos Animais começando por uma breve apresentação do Direito do Ambiente. De seguida, será feita uma articulação entre o Direito do Ambiente e o dos Animais chegando depois a um desenvolvimento breve de como é entendido o animal no Direito e qual a sua proteção jurídica. Concluiremos este texto com um comentário a um acórdão referente aos problemas de proteção dos animais.
            Por fim, chegaremos às conclusões finais que esperamos serem esclarecedoras.


"Virá o dia em que a matança de um animal será considerado crime tanto quanto o assassinato de um homem"


II. Direito do Ambiente e Direitos dos Animais

Consagra a Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) no seu artigo 9.º, que são tarefas fundamentais do Estado, entre outras, defender a natureza e o ambiente e preservar os recursos naturais (art.9.º d) e e) CRP). Por outro lado consagra no artigo 66.º, o direito fundamental ao ambiente.
O conceito de Direito do Ambiente pode ser entendido em dois sentidos:
1.    Sentido Amplo (Antropocentrismo), sendo o Direito do Ambiente composto não só pelos componentes ambientais naturais (água, ar, solo, subsolo, fauna e flora) mas também pelos componentes ambientais humanos/construídos (património artístico, cultural, histórico e económico-social). Defende-se uma visão utilitarista em que se conservem apenas os recursos que sejam suscetíveis de ser aproveitados pelo Homem. Veja-se o artigo 5.º a) da Lei de Bases do Ambiente (daqui em diante, LBA) e artigo 66.º CRP.
2.    Sentido Estrito (Ecocentrismo), incluindo apenas os elementos naturais do ambiente. Aqui o Direito do Ambiente é o direito dos recursos naturais. Os componentes ambientas humanos surgem em segunda linha, tendo de ser equacionados de forma a não comprometerem os componentes ambientais naturais. Confira-se o artigo 2º/2 LBA.
O Professor Vasco Pereira da Silva defende uma posição intercalar: o antropocentrismo ecológico. Aceita a tutela subjetiva, entendendo que os indivíduos têm direitos subjetivos públicos, destinando-se as normas ambientais à proteção dos interesses do Homem. No entanto, admite também a tutela objetiva dos bens ambientais, ou seja, considera que o ambiente deve ser tutelado, sendo isso uma condição necessária para a concretização da dignidade da pessoa humana. Aderimos a esta posição do Professor. Entendemos que não pode ser recusada a proteção de um bem natural só porque este não tem utilidade direta para o Homem.

Agora que se fez uma introdução Geral ao direito do Ambiente passemos à sua articulação com os direitos dos animais.
A proteção dos animais é feita por via indireta visto serem protegidos como componente essencial da natureza (fauna – artigos 6.º e 16.º LBA), não sendo considerados individualmente mas como membros de várias espécies. "O que está em causa é o direito dos cidadãos ao ambiente, não sendo relevante os direitos dos animais".[1] Para Carla Amado Gomes só os animais selvagens integram a fauna e podem ser considerados bens ambientais naturais (artigos 6º/f) e 16º LBA), visto que o animal doméstico/de companhia não é "um objeto inanimado (ao qual quadraria a qualificação como 'coisa'), nem pode ser encarado como um bem natural cujas qualidades devem ser suscetíveis de fruição coletiva. Tratar-se-á de um bem natural atípico"[2].

III. Como é o Animal visto pelo Direito?

O código civil português atribui aos animais o estatuto de coisas, continuando deste modo refém dos velhos paradigmas antropocêntricos cartesianos. Tal estatuto resulta do n.º 1 do artigo 202º CC ("Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas") mas também de outros preceitos dispersos pelo Código[3]. São então entendidos como coisas móveis visto que não estão previstos no artigo 204º CC (cfr. artigo 205º/1 CC). Mas a doutrina não é pacífica a este respeito. No entender do Professor Menezes Cordeiro, tendo o animal a faculdade de se mover por si só constituiria uma categoria especial dentro das coisas móveis, seria um semovente[4]. Autores há que, tendo em consideração a capacidade de sofrimento dos animais e a similitude desta com a capacidade de sofrimento dos próprios seres humanos, defendem não haver razão atendível que incentive a eliminação do sofrimento humano e despreze o sofrimento e dor animal. Promovem, assim, a defesa da igualdade entre o ser humano e o animal, a propósito da proteção contra a dor e sofrimento[5].
Segundo o Professor Menezes Cordeiro, “prevaleceu o entendimento segundo o qual, para a tutela dos animais, era conveniente a sua não recondução pura e simples às coisas”.
Considero que deve considerar-se que os animais têm um regime próprio adaptado às suas especificidades, portanto um tertium genus[6].

IV. Lei De Proteção Dos Animais (LPA)

Os animais têm proteção legislativa na Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro[7], intitulada Lei de Proteção dos Animais. Tal como o nome indica esta Lei veio consagrar um conjunto de normas fundamentais de proteção dos animais. Trata-se de uma Lei "pequena"[8] que deixou de fora questões tão importantes como a relativa às sanções aplicáveis em caso de violação da mesma. É certo que no seu artigo 9º é feita remissão para lei especial, mas esta de nada serve visto que ainda não foram dedicados esforços legislativos para que essa "lei especial" nasça!
Como bem clarifica Jorge Bacelar Gouveia[9], do sentido do artigo 1º da Lei n.º 92/95 pode retirar-se que a proteção dos animais se estriba em dois elementos fundamentais:
1.    Uma atividade de sofrimento ou de morte dos animais (englobando o sofrimento cruel e prolongado, graves lesões e, claro está, a morte dos animais);
2.    Que seja levada a acabo sem necessidade, i.e., que não haja uma causa justificativa para a prática dessa conduta.
No nº3 do mesmo artigo é feita uma enumeração tipológica de situações igualmente consideradas proibidas e violadoras da disposição do nº1.


V. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2004[10]

Façamos agora a análise de uma decisão judicial[11] relativa a um problema de proteção dos animais e do seu tratamento degradante. Discutia-se neste acórdão a licitude/ilicitude da prática desportiva de tiro aos pombos. A autora, uma associação zoófila, pedia que fosse declarada a ilicitude desta atividade, praticada por uma pessoa coletiva de utilidade pública desportiva (réu) que organizou um concurso de tiro aos pombos com chumbo, considerando-a cruel e não justificada contra os animais. Os réus, por outro lado, não só defendem a licitude da atividade como ainda promovem a sua prática.
São duas as possibilidades:
1.    Considerar a prática ilícita em face da LPA, entendendo que se trata de uma crueldade desnecessária contra os animais; ou
2.    Considerar a prática ilícita por:
2.1  Assimilar animais a coisas, totalmente na disponibilidade do seu dono; ou
2.2  Julgar a prática necessária; ou
2.3  Reconhecer a este ‘desporto’ a cobertura de uma tradição cultural, excecionando-a da aplicação da LPA.
Decidiu-se o STJ pela licitude da atividade de tiro aos pombos, entendendo que os animais não são titulares de direitos e que o que existe são deveres das pessoas para com os animais. Considerou, o Tribunal, os animais (pombos) como coisas móveis não titulares de direitos subjetivos à vida ou à integridade física, sendo que a proteção que a lei lhes confere assenta na ideia de os proteger contra violências cruéis, desumanas ou gratuitas para as quais não exista justificação ou tradição cultural. Afirma o STJ que “não faz qualquer sentido a afirmação no sentido de que a morte de pombos por via de tiro ao voo ofende o seu direito à vida ou à integridade física”.
Valeu-se o Tribunal do facto de não ter passado para a LPA a proibição prevista nos trabalhos preparatórios para os atos consistentes em organizar provas de tiro a animais vivos[12]. Concluiu que seria razoável retirar de tal facto que o legislador pretendeu manter a licitude da prática desportiva de tiro ao voo de pombos.
A prática desportiva em análise constitui um facto de promoção do crescimento da espécie e como os pombos se reproduzem facilmente não há risco da sua extinção. A morte dos pombos é rápida e não lhes provoca sofrimento cruel e prolongado. Estes foram outros argumentos apresentados pelo dito Tribunal.
Adiantou o STJ que se trata de uma prática desportiva já antiga, integrada na tradição, e que faz parte do nosso património cultural, colocando-a no mesmo patamar que as touradas e a arte equestre.


Analisemos agora cada um destes argumentos.
Concordamos com o STJ quanto à não atribuição de diretos subjetivos aos animais mas não podemos consentir que não lhes seja salvaguardada qualquer proteção jurídica. Como afirmamos supra deve ser conferido aos animais um regime jurídico próprio de acordo com as suas especificidades. Resulta da Declaração Universal dos Direitos dos Animais[13] que a integridade física e a vida do animal merecem a proteção do direito.
Quanto à não consagração da proibição prevista nos trabalhos preparatórios, entendemos que se ela não passou para a versão final foi porque se considerou que essa proibição já estará inserida no n.º1 do artigo 1.º da LPA.
Entendo que o Tribunal considere que se trata de uma prática que promove o crescimento da espécie fazendo com que os criadores de pombos desenvolvam esforços para aumentar a reprodução das suas crias, mas a verdade é que havendo mais produção a mesma vai ser usada para a prática da mesma atividade estando-se a criar pombos para propositadamente os matar, aumentando possivelmente o nº de praticantes desta atividade. Isto leva a que o aumento da produção na realidade não se sinta. Mais, não haver risco de extinção ao pode ser um motivo para que se aniquile pombos (ou qualquer outro animal) discriminadamente, sem qualquer tipo de limites. Não nos parece que o argumento da morte rápida sem sofrimento cruel proceda. Basta que a morte ocorra “sem necessidade” para que a proibição do artigo 1.º/1 LPA funcione.
Os clubes de tiro existentes em Portugal funcionam como campo de treino para a prática olímpica e como local de prática de tiro ao prato. Não se pode invocar o tiro aos pombos como tradição cultural. A ser assim teria de estar consagrada na LPA como as touradas, a caça e a arte equestre (cfr. art.1.º/3 b) e f) LPA). É uma atividade que pode facilmente ver revezado o seu objeto, substituindo os pombos por pratos (tal com já existe na prática desportiva de tiro). Sendo que os pratos são lançados por uma máquina própria e atingem altura e velocidade elevadas até se tornará bastante desafiante para os praticantes da atividade.
Em suma, não concordamos com a posição tomada pelo STJ, julgamos que a prática de tiro aos pombos não tem qualquer relevância prática. Qual é a necessidade de mutilar/matar um animal quando se pode obter o mesmo tipo de entretenimento atingindo outros objetos? O tiro aos pombos configura um grave e desnecessário atentado à vida e à integridade física destes animais.
Qualquer prática desportiva que sacrifique desnecessariamente o bem-estar do animal à expressão de personalidade humana corporizada na prática de desporto deve ser erradicada, por ilegal e inconstitucional[14].

VI. Conclusões

            Chegados ao fim, cumpre concluir. Acreditamos que a proteção dos animais ainda está longe de ser suficientemente precisa. É necessário desenvolver mais aprofundadamente o seu conteúdo normativo para que as decisões judiciais de casos concretos semelhantes não sejam contraditórias. Por que razão os Tribunais de Relação chegam à conclusão da ilicitude da prática de tiro ao pombo e o Supremo Tribunal de Justiça conclui o inverso? Tudo se deve a uma lei ambígua que pouco explicita o seu âmbito de aplicação, dando azo a interpretações diversas. É necessário que seja mais clara.
            Acreditamos que os animais têm de seguir um regime jurídico próprio diferenciado do regime das coisas. O Professor Vasco Pereira da Silva vai mais longe ao afirmar que “a tutela jurídica objetiva dos animais é manifestamente incompatível com o tratamento pela ordem jurídica como simples coisas móveis”.
            Quanto à prática de tiro aos pombos, entendemos que o uso de alvos vivos é desnecessária para exercitar a perícia/técnica dos atiradores, podendo estes ser substituídos por alvos não vivos, como pratos. Há uma violência injustificada da vida e integridade física dos animais. Estas situações são tituladas pelo artigo 1.º/1 LPA.


Bibliografia

ARAÚJO, Fernando – “A Hora dos Direitos dos Animais”, Almedina, 2003
CANOTILHO, J. J. Gomes/MOREIRA, Vital – “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993
CONDESSO, Fernando – “Direito do Ambiente”, Almedina, 2001
CORDEIRO, António Menezes – “Tratado de Direito Civil Português”, Vol. I Tomo II, 2ª edição, Almedina, 2009
COSTA, António Pereira Da – “Dos Animais (O Direito e os Direitos)”, Coimbra Editora, 1998
GOMES, Carla Amado, Constituição e Ambiente: errância e simbolismo, in O Direito, ano 138.º 2006, IC
GOMES, Carla Amado, O ambiente como objeto e os objetos do Direito do Ambiente, in RJUA, n.º 11/12, 1999
GOMES, Carla Amado, Risco e Modificação do Ato Autorizativo Concretizador de Deveres de Proteção do Ambiente, Coimbra, Coimbra Editora, 2007
GOUVEIA, Jorge Bacelar – “A Prática de Tiro aos Pombos, A Nova Lei de Proteção dos Animais e a Constituição Portuguesa”, 2000
MEDEIROS, Rui, O ambiente na Constituição, in RDES, 1993
MIRANDA, Jorge, A Constituição e o Direito do Ambiente, in Direito do Ambiente (coord. Freitas do Amaral/Marta Tavares de Almeida), Lisboa, INA, 1994
RAMOS, José Luís Bonifácio – “O Animal: Coisa ou Tertium Genus”, Separata da Revista O Direito, Ano 141º, 2009, Almedina
RAMOS, Sílvia De Mira Da Costa – “A Proteção dos Direitos dos Animais”, in: Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra editora, 2003
SILVA, Vasco Pereira – “Verdes São Também os Direitos do Homem”,
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002
SILVA, Vasco Pereira da, Verdes são também os Direitos do Homem, Stvdia Ivridica, Coimbra, Coimbra Editora, 1999




[1] António Pereira da Costa, “Dos Animais…”
[2] Carla Amado Gomes, “Risco e modificação…”
[3] A título de exemplo no artigo 1318º CC, da expressão "animais OU OUTRAS coisas móveis", retira-se a sua qualificação como coisa móvel
[4] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Tomo II Coisas 
[5] Com a ressalva de a igualdade defendida não exigir um tratamento igual entre o animal e o ser humano, mas apenas um respeito idêntico destes "seres viventes"
[6] Bonifácio Ramos, “O Animal: Coisa ou Tertium Genus”
[7] E noutra legislação avulsa que não importa agora referir.
[8] Sistematizada em três capítulos, perfazendo um total de 10 artigos.
[9] Jorge Bacelar Gouveia, “Pratica tiro aos pombos…”
[10] Processo n.º04B3354, Relator: Salvador da Costa. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2cb086094ea352da80256f550041a401?OpenDocument
[11] Procedemos apenas à análise desta decisão. Outras há em que a decisão foi contrária, entenda-se decidiu-se pela ilicitude, por exemplo: Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Outubro de 2003.
[12] Projeto de Lei n.º 107/VI da autoria do deputado António Maria Pereira, Diário da Assembleia da República, II Série - A, n.º 33, de 6 de Abril de 1995
[13] A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi proclamada pela UNESCO em sessão realizada em Bruxelas - Bélgica, em 27 de Janeiro de 1978
[14] Carla Amado Gomes, “Ambiente e Desporto: Ligações Perigosas


Graça Silva, n.º19620

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