1. O
Ambiente e o Direito da União Europeia
Se é verdade que já desde o início da década de 70 do
século XX se sentia a influência, na então Comunidade Económica Europeia (CEE),
da Declaração das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, adotada em
1972, em Estocolmo, também não deixa de ser verdade que, a partir daí, a
atenção às questões ambientais foi uma constante. Efetivamente, apesar de haver
uma falta de base jurídica, isso não impediu, todavia, as instituições
europeias de adotar algumas medidas no âmbito da proteção do ambiente, como a
Diretiva 75/439/CEE, de 16 de Junho de 1975, sobre óleos usados, ou a Diretiva
79/409/CEE, de 2 de Abril de 1979, sobre as aves selvagens e os seus habitats.
No entanto, apesar de toda esta constância, o que é certo
é que só em 1986 é que o Ato Único Europeu constitucionalizou
a ação ambiental da Comunidade, nomeadamente através dos seus artigos 130R a T.
Além do mais, a revisão do Tratado de Roma pelo referido Ato acarretou também
alterações ao artigo 100º, nomeadamente o aditamento de um artigo 100ºA, o qual
permitia a adopção de medidas de harmonização legislativa, direta e
indiretamente relacionadas com o estabelecimento e funcionamento do mercado
interno e que tivessem, entre outras, incidência ambiental. Desta forma, como
bem refere Carla Amado Gomes, “de
uma situação de inexistência de base habilitante específica transitou-se para
um quadro de habilitações alternativas” [1].
Os anos 90 são marcados por uma preocupação acentuada no
que concerne à questão ambiental. Com efeito, começa-se a tomar consciência de
que a política ambiental tem um carácter supra-regional e internacional, e este
aspeto é plenamente reforçado com a assinatura do Tratado de Maastricht, em
1993. Se em termos jurídicos este Tratado nada acrescentou à definição das
bases legais da intervenção da CEE, “no domínio da proteção ambiental, não deve
olvidar-se, em primeiro lugar, o relevo político do aditamento ao preâmbulo da
referencia ao envolvimento da Comunidade na tarefa conjunta de preservação do
ambiente, no contexto do princípio do desenvolvimento sustentável (considerando
8º)” [2].
E intimamente ligada a esta última alteração, não podemos também esquecer
aqueloutra, que passou pela integração nos fins da Comunidade de um
“crescimento sustentado, não inflacionista e que respeite o ambiente” (artigo
G), ao mesmo tempo que se inseriu a política de ambiente no leque de políticas
comunitárias (art.º 3º, 1, k)). Já
com o Tratado de Amsterdão, em 1998, a legitimidade da atuação comunitária no
plano da proteção ambiental foi reforçada, na medida em que se aditou um novo
artigo especialmente dedicado ao princípio da integração, correspondente ao
atual art.º 11º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) [3].
O carácter transversal das
preocupações ambientais ficou também patente, de forma intensa, no Tratado de
Lisboa. O novo art.º 3º, 3, do TUE sublinha, como objetivo da União, o
melhoramento da qualidade do ambiente a par da promoção da competitividade das
empresas e do pleno emprego, aliado a um forte incentivo da investigação
científica e do progresso tecnológico, reforçando, simultaneamente, as ideias
de integração e desenvolvimento sustentável. E aquele carácter transversal que referimos explica, desde
logo, que se encontrem diversas referências à proteção do ambiente noutros
pontos do Tratado, como por exemplo nas disposições gerais relativas à ação
externa da União, a propósito dos fins da ação da União na cena internacional
(art.º 21º, d) e f) do TUE), ou também no já referido art.º 11º. Por último, a
“pedra de toque” é dada pelo art.º 37º da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia (CDFUE), que vem corroborar todo este percurso ora evidenciado,
ao dispor que “Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de
protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo
com o princípio do desenvolvimento sustentável”.
Como sabemos, o Direito da União Europeia dispõe de meios
contenciosos próprios, a acionar junto do Tribunal de Justiça da União Europeia
(TJUE), que têm como objetivo controlar a aplicação das suas normas, defendendo
a legalidade e a uniformidade na sua aplicação. Falamos, para aquilo que nos
interessa, do processo de questões prejudiciais e do recurso de anulação, meios
contenciosos por excelência que os particulares têm ao seu dispor para promover
a defesa da legalidade no âmbito do Direito da União Europeia. Mas será que
estes meios são suficientes para salvaguardar o ambiente ou, ao invés, revelam
um défice de proteção do interesse ambiental? Comecemos por aquele que mais
questões levanta: o recurso de anulação.
2. O recurso de anulação e o Direito do Ambiente
O recurso de anulação, regulado nos artigos 263º,
264º e 266º do TFUE, constitui o meio contencioso principal destinado à
apreciação da validade de atos adotados por instituições, incluindo atos
legislativos, por órgãos e organismos da União [4].
Através deste meio contencioso, o particular (pessoa singular ou coletiva) pode
atacar qualquer ato que lhe diga direta e individualmente respeito, seja-lhe
ele dirigido ou a outrem, quer revista a forma de decisão, quer de regulamento
(art.º 263º, §4, TFUE). Caso obtenha ganho de causa, o Tribunal anulará o ato
impugnado (art.º 264º, TFUE). O particular poderá lançar mão, acessoriamente,
de medidas cautelares, conservatórias (art.º 278º TFUE) ou antecipatórias
(art.º 279º TFUE).
A utilidade do recurso de anulação em sede ambiental não
é evidente. Com efeito, precisamente por a proteção do ambiente constituir uma
política partilhada entre a União e os Estados-Membros (art.º 4º, 2, e) do TFUE), a intervenção da União
Europeia (UE) nesta área tem-se feito através de Diretivas. Ora, estes atos jurídicos
parecem estar, por natureza, isentos do âmbito do recurso de anulação promovido
pelos particulares, porque têm por destinatários os Estados-Membros (art.º
288º, §3, TFUE). Mas não é só aqui que o problema se coloca. Dito de outra
maneira, não nos podemos esquecer de outro celeuma tão ou mais significativo do
que este: como bem sabemos, não se configurando o direito ao ambiente como um
direito subjetivo clássico [5],
em virtude da impossibilidade de apropriação individual das realidades em
presença, e sendo o ambiente, por natureza, um bem de fruição coletiva, como
pode ser requerida a anulação de um ato que provoca danos num bem desse tipo,
não afetando, por isso, “direta e individualmente” ninguém? [6]
2.1.
O
problema da afetação “direta e individual”
Como bem refere Carla
Amado Gomes, “o grande óbice da ação [recurso] de anulação no plano
ambiental é, com efeito, a exigência de uma lesão direta e individual na esfera
jurídica do autor” [7]. Como
adiantámos há pouco, na medida em que o ambiente constitui um bem coletivo, de
utilidades que, de per se, não são
individualmente apropriáveis, a legitimidade individual, consequentemente,
torna-se demasiado restrita para cobrir a sua defesa contenciosa. Desta forma,
qualquer iniciativa baseada num putativo “direito ao ambiente” não passa de uma
ação em defesa de um direito subjetivo individual, cuja lesão é sofrida “direta
e individualmente” pelo seu titular. Só que, pelas considerações que até agora
foram tecidas, tal “direito” não existe. Quid
juris?
Antes de entrarmos no cerna da questão, é sempre
necessário evidenciar a evolução da jurisprudência do TJUE em matéria de
afetação individual e direta dos particulares. Com efeito, o TJUE tem
formulado, desde o caso Plaumann [8],
jurisprudência restritiva no que concerne à dita afetação direta e individual
dos particulares, depois confirmada no caso Jégo-Queré
[9].
Segundo tal jurisprudência restritiva, relativa à afetação “individual” dos
particulares, uma disposição de alcance geral “só pode dizer individualmente
respeito a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva se a atingir em razão
de certas qualidades que lhe são específicas ou em razão de uma situação de
facto que a caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e, por isso, a
individualiza de modo análogo ao do destinatário” [10].
Já no que concerne à afetação “direta”, o TJUE também teve oportunidade, no
caso Dreyfus/Comissão[11],
de evidenciar o seu significado, o que depois viria a ser retomado no caso Micobran[12].
Assim sendo, tal pressuposto de “afetação direta” exige “primeiramente, que a
medida impugnada produza diretamente efeitos na situação jurídica do particular
e, depois, que não deixe nenhuma margem de apreciação aos destinatários da
medida encarregados da sua aplicação, tendo esta carácter puramente automático
e decorrendo apenas da regulamentação em causa, sem aplicação de outras normas
intermédias (...)” [13].
Para aquilo que nos interessa, e retomando o entendimento
atrás exposto, parece ser muito difícil o recurso a este meio contencioso
quando está em causa o direito do ambiente. Não só porque o “ambiente”, de per se, é um bem coletivo (e não
individual), o que bule com a “afetação individual”, mas também porque,
consequência de ser um bem coletivo, tem por destinatários principais os
Estados-Membros, o que torna muito difícil que se cumpra a exigência de uma
pretensa “afetação direta”, pelo menos imediata. Desta feita, cabe perguntar:
não haverá nenhuma forma de incorporar na letra do §4 do artigo 263º pedidos de
impugnação de atos da UE lesivos do ambiente? Como resposta a esta pergunta, há
um destaque que necessariamente tem de ser feito: falamos do famoso Acórdão Greenpeace.
2.2.
O Acórdão
Greenpeace: da originalidade ao
insucesso.
O Acórdão Greenpeace[14]
decidiu um recurso interposto de um despacho de inadmissibilidade do então
Tribunal de Primeira instância sobre um recurso de anulação proposto por uma
coligação de associações ambientais e de particulares contra uma decisão da
Comissão que atribuía um financiamento comunitário para a construção de duas centrais
elétricas nas Ilhas Canárias [15].
O TJUE vem a confirmar a decisão da Primeira Instância, concluindo pela
inadmissibilidade de os autores contestarem a medida em causa em virtude da
ausência de interesse direito e individual, conforme era então exigido pelo §4
do artigo 230º do Tratado de Roma:
“Com efeito,
relativamente às pessoas singulares, resulta da jurisprudência (...) que,
quando, como no presente caso, a situação particular do recorrente não tiver sido tomada em consideração para
adotar o ato em causa, que o atinge de um modo geral e abstrato e, de facto, como a qualquer outra pessoa na
mesma situação, esse recorrente não é individualmente afectado por esse ato. O
mesmo se passa no caso das associações que baseiam a sua legitimidade no facto de
as pessoas que representam serem individualmente afectadas pela decisão
impugnada. Pelas razões referidas no número anterior, não é o que acontece no
presente caso” (§§ 28 e 29, sublinhado nosso)
Tendo em conta a jurisprudência restritiva do TJUE relativamente
a esta matéria, que há pouco evidenciámos, não é de estranhar o entendimento
deste Tribunal: o facto de a decisão ser susceptível de afetar,
indiscriminadamente, toda a população das Ilhas Canárias, torna-a insusceptível
de invocação de um qualquer interesse especial por algum ou alguns cidadãos,
impedindo a caracterização de uma lesão direta e individualizada. No seguimento
deste entendimento, poder-se-ia perguntar, com efeito, se a presença de
associações de defesa do ambiente (i.e.,
associações de defesa de interesses coletivos) entre os autores não impediria,
desde logo, a interposição de um recurso de anulação, precisamente pela
inexistência de interesses individualizados. No entanto, é o próprio Tribunal
que afirma, no caso sub judice, que
noutras ocasiões já admitiu a intervenção de associações deste tipo em recursos
de anulação, nomeadamente em substituição dos seus membros (ou seja, caso fosse
reconhecida a estes legitimidade individual nos termos do §4). Na realidade, os
autores deste recurso entendiam, de certa forma, que a simples presença de uma
associação de fins ambientais poderia ser justificativa de uma adaptação das
condições do art.º 263º (então art.º 230º). Porém, como bem advertiu o
Advogado-Geral Cosmas nas suas
Conclusões [16], não
basta que isso aconteça para se contornar a exigência do §4. E é por isso mesmo
que os recorrentes vão tentar sensibilizar o Tribunal “para a necessidade de
providenciar tutela adequada e eficaz das causas ambientais” [17],
e isto através de várias formas:
(i)
Em primeiro
lugar, vão alegar a afetação individual de várias pessoas singulares: desde um
agricultor residente na Grande Canária, cuja forma de subsistência sofrerá
prejuízos, até a um taxista, também residente na Grande Canária, que se verá
individualmente afetado por força da diminuição do afluxo de turistas em
virtude da degradação das condições de qualidade ambiental;
(ii)
Em segundo
lugar, vão tentar demonstrar que vários membros dos autores associativos se
podem considerar individualmente afetados pela medida: rectius, que vários associados podem vir a sofrer prejuízos diretos
e individuais;
(iii)
Por último,
vão reclamar, em coerência com o objetivo de proteção do ambiente pela UE, que
as condições de propositura do recurso de anulação devem merecer, da parte do
TJUE, um entendimento liberal.
De facto, ao mesmo tempo que o Tratado (e a própria UE)
se abre à tutela ambiental, fecham-se as portas a um controlo de legalidade das
medidas com incidência ambiental: ora isto, no entendimento dos recorrentes,
seria uma contradição flagrante. E este últimos vão mesmo ao ponto de afirmar
que tudo isto desemboca, necessariamente, numa “discriminação ao contrário”, já
que, perante a situação em causa, as instâncias jurisdicionais nacionais, em
regra, admitiriam o pedido. Relativamente a este aspeto, e olhando para o
exemplo português, concluímos que os interesses de fruição de bens coletivos só
gozam, efetivamente, de proteção jurisdicional alargada em ordenamentos – como
o português – que consagram a nossa já conhecida “ação popular” (art.º 52º, 3,
da CRP e artigos 2º e 12º da Lei 83/95, de 31 de Agosto). Ora, consequência de
tudo isto, e como adiantámos no ponto (iii),
supra, os recorrentes vão tentar
convencer o TJUE a rever a interpretação dada ao §4 do art.º 263º. Assim,
sugerem:
“Para considerar
que um determinado recorrente é individualmente afetado por um ato da
Comunidade que implique violação de obrigações comunitárias em matéria de
ambiente, este deverá demonstrar que satisfaz as três condições seguintes:
a)
ter sofrido pessoalmente (ou ser suscetível de
sofrer pessoalmente) um prejuízo efetivo ou potencial por causa do
comportamento alegadamente ilegal da instituição comunitária em causa;
b)
que o prejuízo possa ser imputado ao ato
impugnado;
c)
que o prejuízo seja suscetível de ser reparado por
um acórdão favorável.” (§23)
E no que concerne às
associações de defesa do ambiente, estas devem ser consideradas partes
legítimas “(...) quando os seus objetivos
sejam principalmente os da proteção do ambiente e um ou vários membros da
organização forem individualmente afetados pelo ato comunitário impugnado, mas
também, de modo autónomo, quando, tendo como objetivo principal a proteção do
ambiente, demonstrarem ter um interesse específico na questão em discussão”
(§25).
Ora, se é certo que todos estes (novos) pressupostos
enunciados pelos recorrentes se encontravam preenchidos no caso concreto, tal
não foi suficiente, todavia, para convencer o Tribunal. Na verdade, os
recorrentes caíram outra vez no erro de individualizar o interesse na proteção
do ambiente, como se de um direito subjetivo se tratasse, o que entra
imediatamente em colisão com a natureza objetiva da tutela ambiental para que
aponta, entre outras referencias, o já citado art.º 37º da CDFUE. Assim, se é
certo que o Acórdão ora analisado tem o mérito de alertar para um vazio de
proteção jurídica no âmbito da UE no que concerne a interesses coletivos,
aliado à originalidade dos recorrentes com os seus “novos” pressupostos, o
mesmo, porém, foi condenado ao insucesso dada a insusceptibilidade de esses
interesses serem acolhidos na letra e no espírito do §4 do art.º 263º. Como
refere Carla Amado Gomes, esta
disposição “foi claramente pensada para veicular a defesa contra violações de
situações subjetivas individualizadas, independentemente da sua forma. A lesão
de um bem de fruição coletiva extravasa esta lógica.” [18].
Hipótese diferente seria aquela de o ato
objeto de recurso de anulação lesar diretamente
interesses individualizados e indiretamente
afetar a qualidade ambiental: aqui, a aceitação da ação poderá, reflexamente, servir o objetivo de
proteção ambiental. Aqui, porém, a problemática já será (de novo) a comprovação
da legitimidade individual do autor, em face da interpretação restritiva do
TJUE. No entanto, como bem refere o Advogado-Geral Cosmas,
“Uma intervenção
que afete o ambiente como a que está em causa no processo, situa-se numa zona
geográfica determinada, e a intensidade dos seus efeitos diminui à medida que
nos afastamos do local da intervenção. Paralelamente, as pessoas que se
encontram na proximidade das obras sofrem as suas consequências de outro modo e
mais intensamente do que as que se encontram num local mais afastado, porque,
precisamente, estas últimas se encontram a uma distância maior do centro da
intervenção que afeta o ambiente. Daqui decorre, logicamente, que se poderia
sustentar que as pessoas da primeira categoria constituem um “círculo”
particularmente fechado e delimitado e se encontram, portanto, numa situação de
facto que as caracteriza relativamente a qualquer outro sujeito de direito
(...); logicamente, daqui resulta que as pessoas que se encontram dentro deste
círculo devem ser consideradas como tendo legitimidade para recorrer do ato que
comporta as consequências em questão para o ambiente” (§104).
Mais uma vez, não podemos deixar de concordar com Carla Amado Gomes: é certo que uma
proteção deste género é melhor que nada. Porém, “será sempre uma tutela
amputada, porque assenta em pressupostos subjetivantes. A defesa contra a lesão
de direitos de personalidade ou outros não permite suprir o défice de tutela
dos valores ambientais qua tale, na
medida em que só é acionável (...) a
partir de uma lesão individual. Uma ameaça de dano ecológico puro e simples
continua sem meios de combate à altura do contencioso comunitário [leia-se, da
União Europeia]” [19].
2.3.
O Tratado
de Lisboa: um passo em frente?
Ao longo de toda esta exposição temos olhado para
o art.º 263º, §4 da mesma maneira que olhávamos para o então art.º 230º do
Tratado de Roma. No entanto, não nos podemos esquecer que o Tratado de Lisboa,
quanto à questão da legitimidade ativa no recurso de anulação, trouxe alguma
inovação, ainda que moderada: na verdade, o §4 do referido art.º 263º alarga a
legitimidade ativa dos recorrentes ditos não-privilegiados (portanto, as
pessoas singulares e coletivas), na medida em que prevê que qualquer daqueles pode
interpor recursos não só de “atos de que seja destinatário ou que lhes digam
direta e individualmente respeito”, mas igualmente de “atos regulamentares que
lhe digam diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução” –
afastando-se, neste último caso, a exigência de afetação individual, e abrindo
via à sindicabilidade de atos de alcance geral que produzam efeitos em relação
aos particulares. Ou seja, se para os atos de natureza legislativa (art.º 289º
TFUE), nomeadamente as Diretivas, se exigia uma afetação direta e individual (tornando, como vimos,
praticamente impossível o recurso a este meio contencioso quando estivesse em
causa uma questão ambiental), para os atos regulamentares apenas se exige uma afetação direta, caindo a exigência da
individualidade. Será isto um passo em frente quanto à tutela ambiental ao
nível do contencioso da UE?
Com bem refere Rangel
de Mesquita, “a questão nuclear decorrente da referida alteração
introduzida pelo Tratado de Lisboa reconduz-se, pois, à determinação do
conceito de ‘ato regulamentar’ (...)” [20].
A jurisprudência do Tribunal Geral (TG), no já referido caso Microban[21],
também contribuiu para o esclarecimento da questão. No quadro da impugnação de
uma Decisão da Comissão, o TG debruçou-se sobre a nova noção prevista no §4 do
art.º 263º TFUE: assim, quanto ao conceito de “ato regulamentar”, a
jurisprudência em causa relembra que o mesmo “deve ser entendido no sentido de
que se refere a qualquer ato de alcance geral com exceção dos atos
legislativos”. Assim sendo, parece haver uma separação entre a primeira parte
do §4 do art.º 263º (reservada para os “atos legislativos” do art.º 289º) e a
segunda parte, agora referente aos atos de natureza administrativa e não
legislativa. Qual a relevância deste entendimento para a questão ambiental? Sem
a referida alteração, tínhamos concluído, supra,
que o recurso ao meio contencioso ora em análise, para efeitos de tutela
ambiental, era praticamente impossível. Com efeito:
(i)
Em primeiro
lugar, e como já foi adiantado, “atos”, para efeitos da primeira parte do §4 do
art.º 263º, diz respeito a atos legislativos, ou seja, aqueles que estão
espelhados no art.º 289º TFUE;
(ii)
Por a
proteção do ambiente constituir uma política partilhada entre a União e os
Estados-Membros (art.º 4º, 2, e) do
TFUE), a intervenção da União Europeia (UE) nesta área tem-se feito através de
Diretivas. Estas, dada a sua natureza, estão excluídas do âmbito do recurso de
anulação (nomeadamente do §4 do art.º 263º) por terem como destinatários os
Estados-Membros;
(iii)
Exigindo-se,
nesta primeira parte, uma afetação direta e individual dos particulares (para
que ao recurso de anulação se possa recorrer), e constituindo o ambiente um bem
de natureza coletiva, é praticamente impossível recorrer a este meio
contencioso, dada a impossibilidade de preencher este requisito, como foi
evidenciado supra.
Ora, com esta nova
alteração, não só já não se tem de provar o (restritivo) requisito da afetação
individual, como também, para efeitos da segunda parte do §4 do art.º 263º, abre-se
a porta à sindicabilidade de atos de alcance geral (nomeadamente de natureza
administrativa e não legislativa). Para aquilo que nos interessa, podemos dizer
que esta alteração abriu parcamente
as portas do recurso de anulação relativamente ao estado anterior. Na verdade,
não só a intervenção da UE, em matéria ambiental, se continua a fazer,
maioritariamente, através de Diretivas (portanto, através de atos
legislativos), como também não podemos esquecer que os particulares (ou seja,
as pessoas singulares ou coletivas) têm de continuar a fazer prova da afetação direta relativamente aos atos
regulamentares, isto é, têm de demonstrar que a medida impugnada produz
diretamente efeitos na sua situação jurídica, o que, como vimos, em matéria
ambiental, e apesar de neste caso ser ao nível de atos não legislativos (ou
melhor, ao nível de atos de natureza administrativa), nem sempre é fácil.
Concluindo, o Tratado de Lisboa parece que dá com uma mão
aquilo que tira com outra. Por um lado, ao fazer cair o requisito da afetação individual e ao introduzir os
“atos regulamentares” no seio do recurso de anulação, parece abrir portas a uma
maior legitimidade ativa em matéria ambiental; por outro lado, ao continuar a
intervenção da UE nesta matéria, a fazer-se, maioritariamente, através de
Diretivas (atos legislativos), reduz-se a amplitude da legitimidade que, à
partida, aquela alteração poderia trazer. É por isso mesmo que os avanços que o
Tratado de Lisboa trouxe nesta matéria não foram significativos: avanço
haveria, isso sim, se se tivesse procedido a um repensar do conceito da afetação individual, abandonando o
excessivo entendimento restritivo operado pela jurisprudência Plaumann. No entanto, e infelizmente,
isso ainda está por acontecer.
3. O processo das questões prejudiciais: uma
alternativa possível?
O processo das questões prejudiciais, regulado no
art.º 267º do TFUE, constitui o meio contencioso destinado a garantir a
uniformidade na interpretação e na aplicação do DUE. Este meio contencioso
afigura-se como um instrumento de cooperação entre o TJUE, por um lado, e os
tribunais nacionais, de acordo com o qual estes últimos podem ou devem,
consoante o caso, nas causas sujeitas à sua apreciação e decisão em que esteja
em causa a aplicação de uma norma ou princípio de DUE, e quando considerem ser
necessário para a decisão do litígio, colocar ao TJUE uma questão prejudicial
que pode incidir sobre a interpretação ou validade do DUE. [22]
Em primeiro lugar, e para aquilo que nos interessa, é
sempre necessário referir que esta via jurisdicional, que se configura, em
certas situações, como alternativa do recurso de anulação é, todavia, mais
demorada do que aquele, pois, como dissemos, envolve órgãos de duas jurisdições
diferentes, além de implicar, tendencialmente, a exaustão das vias internas de
recurso (art.º 267º, §3). Mas a vantagem deste processo traduz-se em que, ao
contrário do recurso de anulação, com a possibilidade de intervenção do TJUE
não interfere qualquer requisito especial de legitimidade ativa. Ou seja,
“apesar de o efeito útil do processo de questões prejudiciais se materializar,
para o autor particular, num resultado idêntico ao da ação [recurso] de
anulação – declaração de invalidade do ato comunitário [da União Europeia], com
consequências imediatas sobre a validade do ato interno diretamente lesivo - ,
os pressupostos da legitimidade decorrem apenas do disposto no ordenamento
nacional” [23]. Desta
forma, a partir do momento em que o sistema jurídico nacional seja favorável à
propositura de ações por autores investidos em legitimidade alargada ou
popular, a questão prejudicial poderá ser colocada por quem quer, à luz do
Direito nacional, se apresente investido nesse tipo de legitimidade.
Ora, como há pouco adiantámos, isto revela-se
particularmente importante no que concerne às associações de defesa do ambiente
que, como vimos, não têm legitimidade em sede de recurso de anulação. Será
assim, também, no processo de questões prejudiciais? No caso português, parece
que não. Efetivamente, constatamos que, nas situações em que o ato jurídico da
UE é potencialmente lesivo do ambiente e gera medidas de aplicação nacional –
também lesivas de bens ambientais – que possam ver a sua legalidade posta em
causa, a lei (isto é, a nossa lei) abre caminho a intervenções de autores
investidos em legitimidade popular que, quer através da via jurisdicional
cível, quer através da via jurisdicional administrativa, são suscetíveis de
provocar a apreciação prejudicial da norma de DUE e conduzir, sendo a pronúncia
do TJUE favorável à pretensão, à cessação da causa da ofensa ecológica e à
reposição do statu quo ante –
falamos, aqui, da ação popular (cfr. artigos 2º e 12º da Lei 83/95, de 31 de
Agosto [Lei da Ação Popular]; art.º 9º do CPTA e art.º 4º, 1, l) do ETAF) que confere essa
legitimidade às associações ambientais, inexistente no recurso de anulação.
À partida podíamos concluir que o grande problema de
legitimidade que o recurso de anulação comporta é compensado pelo processo de
questões prejudiciais, havendo aqui uma tutela plena da questão ambiental e não
se levantando mais problemas. No entanto, não é assim. Dito de outra maneira,
este meio contencioso ainda está longe de ser um verdadeiro meio de defesa do
ambiente, e isto por várias razões:
(i)
Em primeiro
lugar, a segurança jurídica fica sempre afetada na medida em que, não sendo a
medida de DUE alvo de uma impugnação no curto prazo de dois meses que o art.º
263º, §5 prevê, ela vai ter uma vida mais longa, multiplicando os danos
advenientes da ilegalidade;
(ii)
Consequentemente,
o custo da atuação judicial, neste caso, vai-se agravar em dinheiro e em tempo,
afetando, desde logo, o princípio da tutela jurisdicional efetiva;
(iii)
Por último,
nunca podemos esquecer a desigualdade associada a este meio contencioso quando
está em causa a defesa do ambiente: é que a legitimidade popular é um instituto
especial, não presente em todos os ordenamentos jurídicos europeus, o que desde
logo inviabiliza o efeito útil do processo de questões prejudiciais - que se
quer, na medida do possível, uniforme – e põe em causa o próprio princípio da
igualdade.
Assim sendo, é forçoso
concluir que o ambiente não é plenamente tutelado pelo processo de questões
prejudiciais, e isto porque, como vimos, nem todas as situações ficam cobertas.
Na verdade, que dizer de Estados-Membros em que a legitimidade popular e
associativa é inexistente ou restrita e onde, consequentemente, a via
alternativa do recurso de anulação é inutilizável? Na verdade, não nos podemos
esquecer que o princípio da tutela jurisdicional efetiva dita que a todo o
direito deve corresponder uma ação e, neste caso, parece que não é isso que
acontece, havendo uma clara violação do referido princípio em nada saudável
para o DUE.
4. Conclusão
Por tudo o que foi exposto é de concluir que a
defesa do ambiente não é plenamente tutelada no âmbito do contencioso da UE.
Nos dois meios contenciosos que analisámos, são claras as falhas que a ambos
estão associadas: no processo de questões prejudiciais, tal como adiantámos
agora mesmo, o princípio da tutela jurisdicional efetiva é posto em causa; já
no recurso de anulação, e dada a excessiva restrição operada pela
jurisprudência do TJUE, o máximo que se conseguirá deste Tribunal é uma tutela
mediata, à medida das lesões individuais, e não uma proteção dos bens
ambientais como bens de interesse público.
Assim, é fácil verificar que a manutenção deste quadro
atenta contra vários princípios de DUE: seja o da tutela jurisdicional efetiva,
seja o da igualdade, seja o da prevenção e o da própria legalidade. E porque o
direito de acesso à justiça deve acompanhar as novas preocupações da UE, é de
acompanhar o entendimento de Vital
Moreira: “no caso de interesses difusos (direito ao ambiente (...)) terá
de admitir-se uma qualquer forma de ‘class action’, a cargo de associações de
defesa dos interesses em causa, bem como em situações mais universais, uma
verdadeira e própria ação popular”[24].
Desta forma, a alteração ao Tratado parece ser uma forma correta de conceder a
entidades selecionadas em função dos seus interesses estatutários legitimidade
para impugnar jurisdicionalmente quaisquer medidas de DUE, desde que
vinculativas, lesivas do ambiente, assegurando, assim, os princípio referidos supra. Até lá, resta esperar.
Afonso
Brás, aluno 20812
Bibliografia utilizada:
· AMADO GOMES,
Carla,:
o
Introdução ao
Direito do Ambiente, Lisboa: Editora AAFDL, 2014;
o A impugnação jurisdicional de actos comunitários
lesivos do ambiente, nos termos do artigo 230 do Tratado de Roma: uma acção
nada popular, in Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Sérvulo Correia, Volume I, 2011;
·
PEREIRA DA
SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito –
Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Edições Almedina, 2002;
· RANGEL DE
MESQUITA, Maria José, Introdução ao
Contencioso da União Europeia, Coimbra: Edições Almedina, 2013;
· MOREIRA, Vital, A
tutela dos direitos fundamentais na União Europeia, in A. Luísa Riquito et alii,
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra, 2001.
[3] Dispõe o
artigo que “as exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser
integradas na definição e execução das políticas e ações da União, em especial
com o objetivo de promover um desenvolvimento sustentável”.
[4] Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia,
Coimbra: Edições Almedina, 2013, pp. 132-140.
[5] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra: Edições Almedina, 2002, pp. 25 e ss.
[6] E diga-se
que dúvidas parecem não existir sobre a
natureza objetiva da tutela ambiental ao nível da UE. A Carta apresenta-se na
linha de continuidade do Tratado de Roma, reconhecendo o ambiente como um valor
de interesse público, cuja salvaguarda é repartida entre os Estados-Membros e
órgãos comunitários, numa estreita harmonização. Assim, a opção pela adesão à
dúbia fórmula do “direito ao ambiente” foi claramente rejeitada.
[7] Cfr. Carla Amado Gomes, A impugnação jurisdicional de actos comunitários lesivos do ambiente,
nos termos do artigo 230 do Tratado de Roma: uma acção nada popular, in Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Sérvulo Correia, I, p. 886.
[21] Ac. Microban, cit., nº 21. Note-se que no
caso Microban o TJUE retoma o
entendimento espelhado no despacho do TG de 06.09.2011, Inuit Tapiriit Kanatami e outros/Parlamento e Conselho, proc.
T-18/10. Esta noção de “ato regulamentar” vem depois a ser confirmada no Ac.
TJ, 03.10.2013, Inuit Tapiriit Kanatami e
outros/Parlamento e Conselho, proferido no recurso do proc. C-583/11 P.
[24] Cfr. Vital Moreira, A tutela dos direitos fundamentais na União Europeia, in A. Luísa Riquito et alii, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,
Coimbra, 2001, p. 78.
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