domingo, 13 de abril de 2014

O Recurso de Anulação, as Questões Prejudiciais e o Direito do Ambiente: uma relação complicada


       1. O Ambiente e o Direito da União Europeia

            Se é verdade que já desde o início da década de 70 do século XX se sentia a influência, na então Comunidade Económica Europeia (CEE), da Declaração das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, adotada em 1972, em Estocolmo, também não deixa de ser verdade que, a partir daí, a atenção às questões ambientais foi uma constante. Efetivamente, apesar de haver uma falta de base jurídica, isso não impediu, todavia, as instituições europeias de adotar algumas medidas no âmbito da proteção do ambiente, como a Diretiva 75/439/CEE, de 16 de Junho de 1975, sobre óleos usados, ou a Diretiva 79/409/CEE, de 2 de Abril de 1979, sobre as aves selvagens e os seus habitats.
            No entanto, apesar de toda esta constância, o que é certo é que só em 1986 é que o Ato Único Europeu constitucionalizou a ação ambiental da Comunidade, nomeadamente através dos seus artigos 130R a T. Além do mais, a revisão do Tratado de Roma pelo referido Ato acarretou também alterações ao artigo 100º, nomeadamente o aditamento de um artigo 100ºA, o qual permitia a adopção de medidas de harmonização legislativa, direta e indiretamente relacionadas com o estabelecimento e funcionamento do mercado interno e que tivessem, entre outras, incidência ambiental. Desta forma, como bem refere Carla Amado Gomes, “de uma situação de inexistência de base habilitante específica transitou-se para um quadro de habilitações alternativas” [1].
            Os anos 90 são marcados por uma preocupação acentuada no que concerne à questão ambiental. Com efeito, começa-se a tomar consciência de que a política ambiental tem um carácter supra-regional e internacional, e este aspeto é plenamente reforçado com a assinatura do Tratado de Maastricht, em 1993. Se em termos jurídicos este Tratado nada acrescentou à definição das bases legais da intervenção da CEE, “no domínio da proteção ambiental, não deve olvidar-se, em primeiro lugar, o relevo político do aditamento ao preâmbulo da referencia ao envolvimento da Comunidade na tarefa conjunta de preservação do ambiente, no contexto do princípio do desenvolvimento sustentável (considerando 8º)” [2]. E intimamente ligada a esta última alteração, não podemos também esquecer aqueloutra, que passou pela integração nos fins da Comunidade de um “crescimento sustentado, não inflacionista e que respeite o ambiente” (artigo G), ao mesmo tempo que se inseriu a política de ambiente no leque de políticas comunitárias (art.º 3º, 1, k)). Já com o Tratado de Amsterdão, em 1998, a legitimidade da atuação comunitária no plano da proteção ambiental foi reforçada, na medida em que se aditou um novo artigo especialmente dedicado ao princípio da integração, correspondente ao atual art.º 11º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) [3]. O carácter transversal das preocupações ambientais ficou também patente, de forma intensa, no Tratado de Lisboa. O novo art.º 3º, 3, do TUE sublinha, como objetivo da União, o melhoramento da qualidade do ambiente a par da promoção da competitividade das empresas e do pleno emprego, aliado a um forte incentivo da investigação científica e do progresso tecnológico, reforçando, simultaneamente, as ideias de integração e desenvolvimento sustentável. E aquele carácter transversal que referimos explica, desde logo, que se encontrem diversas referências à proteção do ambiente noutros pontos do Tratado, como por exemplo nas disposições gerais relativas à ação externa da União, a propósito dos fins da ação da União na cena internacional (art.º 21º, d) e f) do TUE), ou também no já referido art.º 11º. Por último, a “pedra de toque” é dada pelo art.º 37º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), que vem corroborar todo este percurso ora evidenciado, ao dispor que “Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável”.
            Como sabemos, o Direito da União Europeia dispõe de meios contenciosos próprios, a acionar junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que têm como objetivo controlar a aplicação das suas normas, defendendo a legalidade e a uniformidade na sua aplicação. Falamos, para aquilo que nos interessa, do processo de questões prejudiciais e do recurso de anulação, meios contenciosos por excelência que os particulares têm ao seu dispor para promover a defesa da legalidade no âmbito do Direito da União Europeia. Mas será que estes meios são suficientes para salvaguardar o ambiente ou, ao invés, revelam um défice de proteção do interesse ambiental? Comecemos por aquele que mais questões levanta: o recurso de anulação.

2O recurso de anulação e o Direito do Ambiente

            O recurso de anulação, regulado nos artigos 263º, 264º e 266º do TFUE, constitui o meio contencioso principal destinado à apreciação da validade de atos adotados por instituições, incluindo atos legislativos, por órgãos e organismos da União [4]. Através deste meio contencioso, o particular (pessoa singular ou coletiva) pode atacar qualquer ato que lhe diga direta e individualmente respeito, seja-lhe ele dirigido ou a outrem, quer revista a forma de decisão, quer de regulamento (art.º 263º, §4, TFUE). Caso obtenha ganho de causa, o Tribunal anulará o ato impugnado (art.º 264º, TFUE). O particular poderá lançar mão, acessoriamente, de medidas cautelares, conservatórias (art.º 278º TFUE) ou antecipatórias (art.º 279º TFUE).
            A utilidade do recurso de anulação em sede ambiental não é evidente. Com efeito, precisamente por a proteção do ambiente constituir uma política partilhada entre a União e os Estados-Membros (art.º 4º, 2, e) do TFUE), a intervenção da União Europeia (UE) nesta área tem-se feito através de Diretivas. Ora, estes atos jurídicos parecem estar, por natureza, isentos do âmbito do recurso de anulação promovido pelos particulares, porque têm por destinatários os Estados-Membros (art.º 288º, §3, TFUE). Mas não é só aqui que o problema se coloca. Dito de outra maneira, não nos podemos esquecer de outro celeuma tão ou mais significativo do que este: como bem sabemos, não se configurando o direito ao ambiente como um direito subjetivo clássico [5], em virtude da impossibilidade de apropriação individual das realidades em presença, e sendo o ambiente, por natureza, um bem de fruição coletiva, como pode ser requerida a anulação de um ato que provoca danos num bem desse tipo, não afetando, por isso, “direta e individualmente” ninguém? [6]

2.1.       O problema da afetação “direta e individual”

            Como bem refere Carla Amado Gomes, “o grande óbice da ação [recurso] de anulação no plano ambiental é, com efeito, a exigência de uma lesão direta e individual na esfera jurídica do autor” [7]. Como adiantámos há pouco, na medida em que o ambiente constitui um bem coletivo, de utilidades que, de per se, não são individualmente apropriáveis, a legitimidade individual, consequentemente, torna-se demasiado restrita para cobrir a sua defesa contenciosa. Desta forma, qualquer iniciativa baseada num putativo “direito ao ambiente” não passa de uma ação em defesa de um direito subjetivo individual, cuja lesão é sofrida “direta e individualmente” pelo seu titular. Só que, pelas considerações que até agora foram tecidas, tal “direito” não existe. Quid juris?
            Antes de entrarmos no cerna da questão, é sempre necessário evidenciar a evolução da jurisprudência do TJUE em matéria de afetação individual e direta dos particulares. Com efeito, o TJUE tem formulado, desde o caso Plaumann [8], jurisprudência restritiva no que concerne à dita afetação direta e individual dos particulares, depois confirmada no caso Jégo-Queré [9]. Segundo tal jurisprudência restritiva, relativa à afetação “individual” dos particulares, uma disposição de alcance geral “só pode dizer individualmente respeito a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva se a atingir em razão de certas qualidades que lhe são específicas ou em razão de uma situação de facto que a caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e, por isso, a individualiza de modo análogo ao do destinatário” [10]. Já no que concerne à afetação “direta”, o TJUE também teve oportunidade, no caso Dreyfus/Comissão[11], de evidenciar o seu significado, o que depois viria a ser retomado no caso Micobran[12]. Assim sendo, tal pressuposto de “afetação direta” exige “primeiramente, que a medida impugnada produza diretamente efeitos na situação jurídica do particular e, depois, que não deixe nenhuma margem de apreciação aos destinatários da medida encarregados da sua aplicação, tendo esta carácter puramente automático e decorrendo apenas da regulamentação em causa, sem aplicação de outras normas intermédias (...)” [13].
            Para aquilo que nos interessa, e retomando o entendimento atrás exposto, parece ser muito difícil o recurso a este meio contencioso quando está em causa o direito do ambiente. Não só porque o “ambiente”, de per se, é um bem coletivo (e não individual), o que bule com a “afetação individual”, mas também porque, consequência de ser um bem coletivo, tem por destinatários principais os Estados-Membros, o que torna muito difícil que se cumpra a exigência de uma pretensa “afetação direta”, pelo menos imediata. Desta feita, cabe perguntar: não haverá nenhuma forma de incorporar na letra do §4 do artigo 263º pedidos de impugnação de atos da UE lesivos do ambiente? Como resposta a esta pergunta, há um destaque que necessariamente tem de ser feito: falamos do famoso Acórdão Greenpeace.

2.2.       O Acórdão Greenpeace: da originalidade ao insucesso.

         O Acórdão Greenpeace[14] decidiu um recurso interposto de um despacho de inadmissibilidade do então Tribunal de Primeira instância sobre um recurso de anulação proposto por uma coligação de associações ambientais e de particulares contra uma decisão da Comissão que atribuía um financiamento comunitário para a construção de duas centrais elétricas nas Ilhas Canárias [15]. O TJUE vem a confirmar a decisão da Primeira Instância, concluindo pela inadmissibilidade de os autores contestarem a medida em causa em virtude da ausência de interesse direito e individual, conforme era então exigido pelo §4 do artigo 230º do Tratado de Roma:

            Com efeito, relativamente às pessoas singulares, resulta da jurisprudência (...) que, quando, como no presente caso, a situação particular do recorrente não tiver sido tomada em consideração para adotar o ato em causa, que o atinge de um modo geral e abstrato e, de facto, como a qualquer outra pessoa na mesma situação, esse recorrente não é individualmente afectado por esse ato. O mesmo se passa no caso das associações que baseiam a sua legitimidade no facto de as pessoas que representam serem individualmente afectadas pela decisão impugnada. Pelas razões referidas no número anterior, não é o que acontece no presente caso” (§§ 28 e 29, sublinhado nosso)

            Tendo em conta a jurisprudência restritiva do TJUE relativamente a esta matéria, que há pouco evidenciámos, não é de estranhar o entendimento deste Tribunal: o facto de a decisão ser susceptível de afetar, indiscriminadamente, toda a população das Ilhas Canárias, torna-a insusceptível de invocação de um qualquer interesse especial por algum ou alguns cidadãos, impedindo a caracterização de uma lesão direta e individualizada. No seguimento deste entendimento, poder-se-ia perguntar, com efeito, se a presença de associações de defesa do ambiente (i.e., associações de defesa de interesses coletivos) entre os autores não impediria, desde logo, a interposição de um recurso de anulação, precisamente pela inexistência de interesses individualizados. No entanto, é o próprio Tribunal que afirma, no caso sub judice, que noutras ocasiões já admitiu a intervenção de associações deste tipo em recursos de anulação, nomeadamente em substituição dos seus membros (ou seja, caso fosse reconhecida a estes legitimidade individual nos termos do §4). Na realidade, os autores deste recurso entendiam, de certa forma, que a simples presença de uma associação de fins ambientais poderia ser justificativa de uma adaptação das condições do art.º 263º (então art.º 230º). Porém, como bem advertiu o Advogado-Geral Cosmas nas suas Conclusões [16], não basta que isso aconteça para se contornar a exigência do §4. E é por isso mesmo que os recorrentes vão tentar sensibilizar o Tribunal “para a necessidade de providenciar tutela adequada e eficaz das causas ambientais” [17], e isto através de várias formas:
(i)             Em primeiro lugar, vão alegar a afetação individual de várias pessoas singulares: desde um agricultor residente na Grande Canária, cuja forma de subsistência sofrerá prejuízos, até a um taxista, também residente na Grande Canária, que se verá individualmente afetado por força da diminuição do afluxo de turistas em virtude da degradação das condições de qualidade ambiental;
(ii)           Em segundo lugar, vão tentar demonstrar que vários membros dos autores associativos se podem considerar individualmente afetados pela medida: rectius, que vários associados podem vir a sofrer prejuízos diretos e individuais;
(iii)          Por último, vão reclamar, em coerência com o objetivo de proteção do ambiente pela UE, que as condições de propositura do recurso de anulação devem merecer, da parte do TJUE, um entendimento liberal.

            De facto, ao mesmo tempo que o Tratado (e a própria UE) se abre à tutela ambiental, fecham-se as portas a um controlo de legalidade das medidas com incidência ambiental: ora isto, no entendimento dos recorrentes, seria uma contradição flagrante. E este últimos vão mesmo ao ponto de afirmar que tudo isto desemboca, necessariamente, numa “discriminação ao contrário”, já que, perante a situação em causa, as instâncias jurisdicionais nacionais, em regra, admitiriam o pedido. Relativamente a este aspeto, e olhando para o exemplo português, concluímos que os interesses de fruição de bens coletivos só gozam, efetivamente, de proteção jurisdicional alargada em ordenamentos – como o português – que consagram a nossa já conhecida “ação popular” (art.º 52º, 3, da CRP e artigos 2º e 12º da Lei 83/95, de 31 de Agosto). Ora, consequência de tudo isto, e como adiantámos no ponto (iii), supra, os recorrentes vão tentar convencer o TJUE a rever a interpretação dada ao §4 do art.º 263º. Assim, sugerem:

            Para considerar que um determinado recorrente é individualmente afetado por um ato da Comunidade que implique violação de obrigações comunitárias em matéria de ambiente, este deverá demonstrar que satisfaz as três condições seguintes:

a)     ter sofrido pessoalmente (ou ser suscetível de sofrer pessoalmente) um prejuízo efetivo ou potencial por causa do comportamento alegadamente ilegal da instituição comunitária em causa;
b)     que o prejuízo possa ser imputado ao ato impugnado;
c)     que o prejuízo seja suscetível de ser reparado por um acórdão favorável.”  (§23)

E no que concerne às associações de defesa do ambiente, estas devem ser consideradas partes legítimas “(...) quando os seus objetivos sejam principalmente os da proteção do ambiente e um ou vários membros da organização forem individualmente afetados pelo ato comunitário impugnado, mas também, de modo autónomo, quando, tendo como objetivo principal a proteção do ambiente, demonstrarem ter um interesse específico na questão em discussão” (§25).
            Ora, se é certo que todos estes (novos) pressupostos enunciados pelos recorrentes se encontravam preenchidos no caso concreto, tal não foi suficiente, todavia, para convencer o Tribunal. Na verdade, os recorrentes caíram outra vez no erro de individualizar o interesse na proteção do ambiente, como se de um direito subjetivo se tratasse, o que entra imediatamente em colisão com a natureza objetiva da tutela ambiental para que aponta, entre outras referencias, o já citado art.º 37º da CDFUE. Assim, se é certo que o Acórdão ora analisado tem o mérito de alertar para um vazio de proteção jurídica no âmbito da UE no que concerne a interesses coletivos, aliado à originalidade dos recorrentes com os seus “novos” pressupostos, o mesmo, porém, foi condenado ao insucesso dada a insusceptibilidade de esses interesses serem acolhidos na letra e no espírito do §4 do art.º 263º. Como refere Carla Amado Gomes, esta disposição “foi claramente pensada para veicular a defesa contra violações de situações subjetivas individualizadas, independentemente da sua forma. A lesão de um bem de fruição coletiva extravasa esta lógica.” [18].  Hipótese diferente seria aquela de o ato objeto de recurso de anulação lesar diretamente interesses individualizados e indiretamente afetar a qualidade ambiental: aqui, a aceitação da ação poderá, reflexamente, servir o objetivo de proteção ambiental. Aqui, porém, a problemática já será (de novo) a comprovação da legitimidade individual do autor, em face da interpretação restritiva do TJUE. No entanto, como bem refere o Advogado-Geral Cosmas,

            Uma intervenção que afete o ambiente como a que está em causa no processo, situa-se numa zona geográfica determinada, e a intensidade dos seus efeitos diminui à medida que nos afastamos do local da intervenção. Paralelamente, as pessoas que se encontram na proximidade das obras sofrem as suas consequências de outro modo e mais intensamente do que as que se encontram num local mais afastado, porque, precisamente, estas últimas se encontram a uma distância maior do centro da intervenção que afeta o ambiente. Daqui decorre, logicamente, que se poderia sustentar que as pessoas da primeira categoria constituem um “círculo” particularmente fechado e delimitado e se encontram, portanto, numa situação de facto que as caracteriza relativamente a qualquer outro sujeito de direito (...); logicamente, daqui resulta que as pessoas que se encontram dentro deste círculo devem ser consideradas como tendo legitimidade para recorrer do ato que comporta as consequências em questão para o ambiente” (§104).

            Mais uma vez, não podemos deixar de concordar com Carla Amado Gomes: é certo que uma proteção deste género é melhor que nada. Porém, “será sempre uma tutela amputada, porque assenta em pressupostos subjetivantes. A defesa contra a lesão de direitos de personalidade ou outros não permite suprir o défice de tutela dos valores ambientais qua tale, na medida em que só é acionável (...)  a partir de uma lesão individual. Uma ameaça de dano ecológico puro e simples continua sem meios de combate à altura do contencioso comunitário [leia-se, da União Europeia]” [19].

2.3.       O Tratado de Lisboa: um passo em frente?

         Ao longo de toda esta exposição temos olhado para o art.º 263º, §4 da mesma maneira que olhávamos para o então art.º 230º do Tratado de Roma. No entanto, não nos podemos esquecer que o Tratado de Lisboa, quanto à questão da legitimidade ativa no recurso de anulação, trouxe alguma inovação, ainda que moderada: na verdade, o §4 do referido art.º 263º alarga a legitimidade ativa dos recorrentes ditos não-privilegiados (portanto, as pessoas singulares e coletivas), na medida em que prevê que qualquer daqueles pode interpor recursos não só de “atos de que seja destinatário ou que lhes digam direta e individualmente respeito”, mas igualmente de “atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução” – afastando-se, neste último caso, a exigência de afetação individual, e abrindo via à sindicabilidade de atos de alcance geral que produzam efeitos em relação aos particulares. Ou seja, se para os atos de natureza legislativa (art.º 289º TFUE), nomeadamente as Diretivas, se exigia uma afetação direta e individual (tornando, como vimos, praticamente impossível o recurso a este meio contencioso quando estivesse em causa uma questão ambiental), para os atos regulamentares apenas se exige uma afetação direta, caindo a exigência da individualidade. Será isto um passo em frente quanto à tutela ambiental ao nível do contencioso da UE?
            Com bem refere Rangel de Mesquita, “a questão nuclear decorrente da referida alteração introduzida pelo Tratado de Lisboa reconduz-se, pois, à determinação do conceito de ‘ato regulamentar’ (...)” [20]. A jurisprudência do Tribunal Geral (TG), no já referido caso Microban[21], também contribuiu para o esclarecimento da questão. No quadro da impugnação de uma Decisão da Comissão, o TG debruçou-se sobre a nova noção prevista no §4 do art.º 263º TFUE: assim, quanto ao conceito de “ato regulamentar”, a jurisprudência em causa relembra que o mesmo “deve ser entendido no sentido de que se refere a qualquer ato de alcance geral com exceção dos atos legislativos”. Assim sendo, parece haver uma separação entre a primeira parte do §4 do art.º 263º (reservada para os “atos legislativos” do art.º 289º) e a segunda parte, agora referente aos atos de natureza administrativa e não legislativa. Qual a relevância deste entendimento para a questão ambiental? Sem a referida alteração, tínhamos concluído, supra, que o recurso ao meio contencioso ora em análise, para efeitos de tutela ambiental, era praticamente impossível. Com efeito:

(i)             Em primeiro lugar, e como já foi adiantado, “atos”, para efeitos da primeira parte do §4 do art.º 263º, diz respeito a atos legislativos, ou seja, aqueles que estão espelhados no art.º 289º TFUE;
(ii)           Por a proteção do ambiente constituir uma política partilhada entre a União e os Estados-Membros (art.º 4º, 2, e) do TFUE), a intervenção da União Europeia (UE) nesta área tem-se feito através de Diretivas. Estas, dada a sua natureza, estão excluídas do âmbito do recurso de anulação (nomeadamente do §4 do art.º 263º) por terem como destinatários os Estados-Membros;
(iii)          Exigindo-se, nesta primeira parte, uma afetação direta e individual dos particulares (para que ao recurso de anulação se possa recorrer), e constituindo o ambiente um bem de natureza coletiva, é praticamente impossível recorrer a este meio contencioso, dada a impossibilidade de preencher este requisito, como foi evidenciado supra.

Ora, com esta nova alteração, não só já não se tem de provar o (restritivo) requisito da afetação individual, como também, para efeitos da segunda parte do §4 do art.º 263º, abre-se a porta à sindicabilidade de atos de alcance geral (nomeadamente de natureza administrativa e não legislativa). Para aquilo que nos interessa, podemos dizer que esta alteração abriu parcamente as portas do recurso de anulação relativamente ao estado anterior. Na verdade, não só a intervenção da UE, em matéria ambiental, se continua a fazer, maioritariamente, através de Diretivas (portanto, através de atos legislativos), como também não podemos esquecer que os particulares (ou seja, as pessoas singulares ou coletivas) têm de continuar a fazer prova da afetação direta relativamente aos atos regulamentares, isto é, têm de demonstrar que a medida impugnada produz diretamente efeitos na sua situação jurídica, o que, como vimos, em matéria ambiental, e apesar de neste caso ser ao nível de atos não legislativos (ou melhor, ao nível de atos de natureza administrativa), nem sempre é fácil.
            Concluindo, o Tratado de Lisboa parece que dá com uma mão aquilo que tira com outra. Por um lado, ao fazer cair o requisito da afetação individual e ao introduzir os “atos regulamentares” no seio do recurso de anulação, parece abrir portas a uma maior legitimidade ativa em matéria ambiental; por outro lado, ao continuar a intervenção da UE nesta matéria, a fazer-se, maioritariamente, através de Diretivas (atos legislativos), reduz-se a amplitude da legitimidade que, à partida, aquela alteração poderia trazer. É por isso mesmo que os avanços que o Tratado de Lisboa trouxe nesta matéria não foram significativos: avanço haveria, isso sim, se se tivesse procedido a um repensar do conceito da afetação individual, abandonando o excessivo entendimento restritivo operado pela jurisprudência Plaumann. No entanto, e infelizmente, isso ainda está por acontecer.

     3. O processo das questões prejudiciais: uma alternativa possível?

         O processo das questões prejudiciais, regulado no art.º 267º do TFUE, constitui o meio contencioso destinado a garantir a uniformidade na interpretação e na aplicação do DUE. Este meio contencioso afigura-se como um instrumento de cooperação entre o TJUE, por um lado, e os tribunais nacionais, de acordo com o qual estes últimos podem ou devem, consoante o caso, nas causas sujeitas à sua apreciação e decisão em que esteja em causa a aplicação de uma norma ou princípio de DUE, e quando considerem ser necessário para a decisão do litígio, colocar ao TJUE uma questão prejudicial que pode incidir sobre a interpretação ou validade do DUE. [22]
            Em primeiro lugar, e para aquilo que nos interessa, é sempre necessário referir que esta via jurisdicional, que se configura, em certas situações, como alternativa do recurso de anulação é, todavia, mais demorada do que aquele, pois, como dissemos, envolve órgãos de duas jurisdições diferentes, além de implicar, tendencialmente, a exaustão das vias internas de recurso (art.º 267º, §3). Mas a vantagem deste processo traduz-se em que, ao contrário do recurso de anulação, com a possibilidade de intervenção do TJUE não interfere qualquer requisito especial de legitimidade ativa. Ou seja, “apesar de o efeito útil do processo de questões prejudiciais se materializar, para o autor particular, num resultado idêntico ao da ação [recurso] de anulação – declaração de invalidade do ato comunitário [da União Europeia], com consequências imediatas sobre a validade do ato interno diretamente lesivo - , os pressupostos da legitimidade decorrem apenas do disposto no ordenamento nacional” [23]. Desta forma, a partir do momento em que o sistema jurídico nacional seja favorável à propositura de ações por autores investidos em legitimidade alargada ou popular, a questão prejudicial poderá ser colocada por quem quer, à luz do Direito nacional, se apresente investido nesse tipo de legitimidade.
            Ora, como há pouco adiantámos, isto revela-se particularmente importante no que concerne às associações de defesa do ambiente que, como vimos, não têm legitimidade em sede de recurso de anulação. Será assim, também, no processo de questões prejudiciais? No caso português, parece que não. Efetivamente, constatamos que, nas situações em que o ato jurídico da UE é potencialmente lesivo do ambiente e gera medidas de aplicação nacional – também lesivas de bens ambientais – que possam ver a sua legalidade posta em causa, a lei (isto é, a nossa lei) abre caminho a intervenções de autores investidos em legitimidade popular que, quer através da via jurisdicional cível, quer através da via jurisdicional administrativa, são suscetíveis de provocar a apreciação prejudicial da norma de DUE e conduzir, sendo a pronúncia do TJUE favorável à pretensão, à cessação da causa da ofensa ecológica e à reposição do statu quo ante – falamos, aqui, da ação popular (cfr. artigos 2º e 12º da Lei 83/95, de 31 de Agosto [Lei da Ação Popular]; art.º 9º do CPTA e art.º 4º, 1, l) do ETAF) que confere essa legitimidade às associações ambientais, inexistente no recurso de anulação.
            À partida podíamos concluir que o grande problema de legitimidade que o recurso de anulação comporta é compensado pelo processo de questões prejudiciais, havendo aqui uma tutela plena da questão ambiental e não se levantando mais problemas. No entanto, não é assim. Dito de outra maneira, este meio contencioso ainda está longe de ser um verdadeiro meio de defesa do ambiente, e isto por várias razões:

(i)             Em primeiro lugar, a segurança jurídica fica sempre afetada na medida em que, não sendo a medida de DUE alvo de uma impugnação no curto prazo de dois meses que o art.º 263º, §5 prevê, ela vai ter uma vida mais longa, multiplicando os danos advenientes da ilegalidade;
(ii)           Consequentemente, o custo da atuação judicial, neste caso, vai-se agravar em dinheiro e em tempo, afetando, desde logo, o princípio da tutela jurisdicional efetiva;
(iii)          Por último, nunca podemos esquecer a desigualdade associada a este meio contencioso quando está em causa a defesa do ambiente: é que a legitimidade popular é um instituto especial, não presente em todos os ordenamentos jurídicos europeus, o que desde logo inviabiliza o efeito útil do processo de questões prejudiciais - que se quer, na medida do possível, uniforme – e põe em causa o próprio princípio da igualdade.

Assim sendo, é forçoso concluir que o ambiente não é plenamente tutelado pelo processo de questões prejudiciais, e isto porque, como vimos, nem todas as situações ficam cobertas. Na verdade, que dizer de Estados-Membros em que a legitimidade popular e associativa é inexistente ou restrita e onde, consequentemente, a via alternativa do recurso de anulação é inutilizável? Na verdade, não nos podemos esquecer que o princípio da tutela jurisdicional efetiva dita que a todo o direito deve corresponder uma ação e, neste caso, parece que não é isso que acontece, havendo uma clara violação do referido princípio em nada saudável para o DUE.

4. Conclusão

            Por tudo o que foi exposto é de concluir que a defesa do ambiente não é plenamente tutelada no âmbito do contencioso da UE. Nos dois meios contenciosos que analisámos, são claras as falhas que a ambos estão associadas: no processo de questões prejudiciais, tal como adiantámos agora mesmo, o princípio da tutela jurisdicional efetiva é posto em causa; já no recurso de anulação, e dada a excessiva restrição operada pela jurisprudência do TJUE, o máximo que se conseguirá deste Tribunal é uma tutela mediata, à medida das lesões individuais, e não uma proteção dos bens ambientais como bens de interesse público.
            Assim, é fácil verificar que a manutenção deste quadro atenta contra vários princípios de DUE: seja o da tutela jurisdicional efetiva, seja o da igualdade, seja o da prevenção e o da própria legalidade. E porque o direito de acesso à justiça deve acompanhar as novas preocupações da UE, é de acompanhar o entendimento de Vital Moreira: “no caso de interesses difusos (direito ao ambiente (...)) terá de admitir-se uma qualquer forma de ‘class action’, a cargo de associações de defesa dos interesses em causa, bem como em situações mais universais, uma verdadeira e própria ação popular”[24]. Desta forma, a alteração ao Tratado parece ser uma forma correta de conceder a entidades selecionadas em função dos seus interesses estatutários legitimidade para impugnar jurisdicionalmente quaisquer medidas de DUE, desde que vinculativas, lesivas do ambiente, assegurando, assim, os princípio referidos supra. Até lá, resta esperar.

                                                                                                Afonso Brás, aluno 20812

Bibliografia utilizada:

·       AMADO GOMES, Carla,:
o   Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Editora AAFDL, 2014;
o   A impugnação jurisdicional de actos comunitários lesivos do ambiente, nos termos do artigo 230 do Tratado de Roma: uma acção nada popular, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Volume I, 2011;

·      PEREIRA DA SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Edições Almedina, 2002;
·      RANGEL DE MESQUITA, Maria José, Introdução ao Contencioso da União Europeia, Coimbra: Edições Almedina, 2013;
·       MOREIRA, Vital, A tutela dos direitos fundamentais na União Europeia, in A. Luísa Riquito et alii, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra, 2001.




[1] Cfr. Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Editora AAFDL, 2014, p. 73.
[2] Idem, p. 74.
[3] Dispõe o artigo que “as exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser integradas na definição e execução das políticas e ações da União, em especial com o objetivo de promover um desenvolvimento sustentável”.
[4] Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia, Coimbra: Edições Almedina, 2013, pp. 132-140.
[5] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Edições Almedina, 2002, pp. 25 e ss.
[6] E diga-se que dúvidas parecem não existir  sobre a natureza objetiva da tutela ambiental ao nível da UE. A Carta apresenta-se na linha de continuidade do Tratado de Roma, reconhecendo o ambiente como um valor de interesse público, cuja salvaguarda é repartida entre os Estados-Membros e órgãos comunitários, numa estreita harmonização. Assim, a opção pela adesão à dúbia fórmula do “direito ao ambiente” foi claramente rejeitada.
[7] Cfr. Carla Amado Gomes, A impugnação jurisdicional de actos comunitários lesivos do ambiente, nos termos do artigo 230 do Tratado de Roma: uma acção nada popular, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, I, p. 886.
[8] Ac. TJ, 15.07.1963, Plaumann, proc. 25/62.
[9] Ac. TJ, 01.04.2004, Jégo-Queré, proc. C-263/02 P
[10] Ac. Plaumann, cit., pp. 279 e 284 e Ac. Jégo-Queré, cit., nº 45.
[11] Ac. TJ, 05.05.1998, Dreyfus/Comissão, proc. C386/96 P.
[12] Ac. TG, 25.10.2011, Microban, proc. T-262/10.
[13] Ac. Microban, cit., nº 27.
[14] Ac. TJ, 02.04.1998, Greenpeace Council e outros, proc. C-321/95.
[15] Cfr. Carla Amado Gomes, A impugnação..., pp. 892 e ss.
[16] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral G. Cosmas, nº 117.
[17] Cfr. Carla Amado Gomes, ob. cit., p. 894.
[18] Cfr. Carla Amado Gomes, ob. cit., p. 897.
[19] Idem, p. 898.
[20] Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, ob. cit., p.134.
[21] Ac. Microban, cit., nº 21. Note-se que no caso Microban o TJUE retoma o entendimento espelhado no despacho do TG de 06.09.2011, Inuit Tapiriit Kanatami e outros/Parlamento e Conselho, proc. T-18/10. Esta noção de “ato regulamentar” vem depois a ser confirmada no Ac. TJ, 03.10.2013, Inuit Tapiriit Kanatami e outros/Parlamento e Conselho, proferido no recurso do proc. C-583/11 P.
[22] Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, ob. cit., pp. 124 e ss.
[23] Cfr. Carla Amado Gomes, ob. cit., p. 890.
[24] Cfr. Vital Moreira, A tutela dos direitos fundamentais na União Europeia, in A. Luísa Riquito et alii, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra, 2001, p. 78.

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