OS CONTRATOS DE ADAPTAÇÃO AMBIENTAL, A LEGALIDADE E
A TUTELA DE TERCEIROS
O presente texto irá versar sobre os contratos de adaptação
ambiental e do seu enquadramento no ordenamento jurídico português. Não nos
comprometemos a fazer aqui um extenso estudo sobre o tema, debruçar-nos-emos
apenas sobre alguns pontos que nos parecem relevantes e merecedores de análise.
Os contratos de adaptação inserem-se nos instrumentos
preventivos[1] de
que fala Carla Amado Gomes e como tal seguem a lógica subjacente ao princípio
da prevenção. Têm consagração específica no artigo 78.º do Decreto-Lei n.º
236/98, de 1 de Agosto, que versa sobre a qualidade ambiental da água. É de
notar que a admissibilidade destes contratos resulta do artigo 278.º do Código
dos Contratos Públicos (CPP), que prevê a possibilidade de a Administração os
poder celebrar[2]. O
artigo 35.º/2 da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril)
dispunha que "O Governo poderá celebrar contratos-programa com vista a
reduzir gradualmente a carga poluente das atividades poluidoras”, mas é
curioso constatar que na nova Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 19/2014, de 14
de Abril) não há correspondência expressa a este artigo.
Tendo por base o artigo 78.º/3 do Decreto-Lei n.º 236/98
podemos afirmar que os contratos de adaptação visam a concessão de um prazo e a
fixação de um calendário para a adaptação da legislação em vigor. Na verdade o
que se pretende é o não exercício do poder sancionatório da Administração[3],[4],
havendo um acordo em relação ao não cumprimento das normas legais a
Administração não poderá vir dizer depois que a lei não está a ser cumprida.
Coloca-se, portanto, um problema relacionado com o princípio da legalidade
visto que estes contratos têm um sentido derrogatório do regime legalmente previsto,
o que parece contrariar o artigo 112.º/5 da Constituição da República
Portuguesa[5]
(CRP). Carla Amado Gomes vem pronunciar-se pela inconstitucionalidade destes
contratos precisamente por violarem o artigo 112.º/5 CRP, na medida em que são
contratos públicos a alterar normas legais. Para a Autora, se estes contratos
apenas tivessem eficácia inter partes
a sua constitucionalidade estaria salvaguardada. Mark Kirkby vem também
pronunciar-se pela inconstitucionalidade, afirmando que o 78.º do Decreto-Lei
n.º236/98 vem permitir à Administração, por via contratual, suspender os
efeitos de normas que ela própria consagrou o que viola o artigo 112.º/5 CRP, desprezando-se
a hierarquia dos atos normativos que o artigo consagra. Num sentido mais
benevolente pronuncia-se o Professor Vasco Pereira da Silva[6]
que defende que deve fazer-se uma ponderação de princípios (por um lado os
princípios da constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade, e por outro
os princípios da eficácia da realização da política do ambiente pela via
contratual, da participação e colaboração dos particulares no exercício da
administração do ambiente e o da tutela da confiança dos particulares). Se por
um lado não pode haver contratos administrativos que violem os princípios constitucionais,
por outro não se pode negar por completo a possibilidade de celebração destes
contratos. Para o Professor os contratos de adaptação serão possíveis quando: a)
caibam na margem de livre decisão da Administração; b) encontrem cabimento na
previsão legislativa; c) não correspondam a uma situação de fraude à
Constituição ou à lei; d) não coloquem em causa princípios fundamentais da atuação
administrativa. Parece-nos que a posição do Professor Vasco Pereira da Silva é
a mais sensata uma vez que não se limita a “declarar” a inconstitucionalidade
dos contratos de adaptação ambiental fazendo um esforço para encontrar soluções
que se enquadrem no ordenamento jurídico português. O que se pretende, no
fundo, com estes contratos é evitar que as entidades infratoras acumulem
sanções pelo não cumprimento das normas legais a que ainda não se adaptaram. O
infrator não deixa de o ser só porque celebrou um contrato de adaptação com a
Administração, o que acontece é que lhe é conferido um prazo para que consiga
chegar à zona da legalidade. Mas não ignoremos o facto de que se no prazo
acordado o infrator não chegar a essa zona de legalidade já nada o poderá “salvar”
dessas sanções pecuniárias.
Como bem nota o Professor Vasco Pereira da Silva é possível
fazer a divisão destes contratos em dois momentos chave. Primeiro temos um
contrato-tipo entre as Associações representativas dos sectores agroindustriais
e agroalimentares, por um lado, e o Ministério do Ambiente e o Ministério
responsável pelo sector de atividade económica, por outro. Depois temos uma
segunda fase de adesão em que as unidades empresariais do sector podem aderir
ao contrato de adaptação, desde que nos três meses seguintes à assinatura do
contrato-tipo (art.º 78.º/4 do Decreto-Lei n.º 236/98).
Cumpre clarificar a natureza dos contratos de adaptação uma
vez que é a partir dela que saberemos que regime seguir na reação contra lesões
decorrentes deles. Parece-nos claro que os contratos de adaptação são
verdadeiros contratos administrativos, pois que se apresentam como um acordo de
vontades que tem obrigatoriamente como contratante uma autoridade pública e são
geradores de direitos e deveres de direito público (vide artigo 1.º/6 CPP).
Fernanda Maças acaba por delimitá-los como "contratos com obrigações
bem definidas para ambas as partes e cominando sanções para o não cumprimento
das prescrições e prazos constantes do cronograma de adaptação". O
Professor Vasco Pereira da Silva defende a utilização de um conceito amplo de contrato
administrativo de modo que este abranja todos os acordos de vontade decorrentes
do exercício da função administrativa. Deste modo possibilita-se a unificação
do regime jurídico da atividade da Administração Pública. Tratando-se de um
contrato administrativo aplicam-se, naturalmente[7],
as regras gerais dos contratos administrativos.
Agora que temos como assente a natureza jurídica do contrato
de adaptação, passemos à análise da tutela jurisdicional de terceiros. Antes de
mais é necessário identificar quem são os terceiros a estes contratos, ou
melhor, que terceiros têm legitimidade para os impugnar. Sendo o ambiente um
dos interesses protegidos pelo artigo 1.º/2 da Lei de Participação
Procedimental e Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto - LAP), os terceiros[8]
encontram legitimidade no artigo 2.º/2 da referida Lei, não sendo necessário
qualquer interesse direto na demanda qualquer particular tem legitimidade para
agir na defesa do ambiente. A Ação Popular, aqui, compreende a ação para defesa
do ambiente e o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra
quaisquer atos administrativos lesivos.
A tutela de terceiros ao contrato de adaptação relativamente
à legalidade deste tem de ser feita no âmbito da teoria do ato destacável, permitindo-se
a impugnação dos atos destacáveis prévios à celebração do contrato. A teoria
dos atos destacáveis[9]
assegura a impugnabilidade do ato de forma autónoma[10],
afirmando a autonomia dos atos pré-contratuais ao contrato para efeitos
substantivos e processuais. Nos dias de hoje é indiscutível que os atos
pré-contratuais são destacáveis do contrato (que venha a ser) celebrado (vide artigo 100.º Código de Processo nos
Tribunais Administrativos – CPTA). E qual é o ato pré-contratual (destacável)
dos contratos de adaptação ambiental? Em última instância, na ausência de um
ato administrativo, invoca-se o ato administrativo implícito[11]
em que a própria decisão de contratar se consubstancia.
Assim, qualquer cidadão pode reagir contra atos destacáveis
para defesa do interesse ambiente através de uma ação administrativa especial
de impugnação de ato administrativo, aferindo-se a sua legitimidade através do
artigo 12.º/1 da LAP.
Bibliografia:
GOMES, Carla Amado, Introdução ao
Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2012
KIRKBY, Mark Bobela-Mota, Os
Contratos de Adaptação Ambiental, Lisboa, AAFDL, 2001
MAÇÃS, Maria Fernanda, Os Acordos
Sectoriais como um Instrumento da Política Ambiental, in Revista do
CEDOUA, 5, ano III, 2000,
SILVA, Vasco Pereira
da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina,
2002
[1] Para além destes, Carla Amado Gomes faz a distinção
também entre instrumentos reparatórios, repressivos e de fomento.
[2] A este propósito é importante
referir a opção de escolha entre ato e contrato resultante deste artigo.
[3] Fernanda Maçãs, Os Acordos Sectoriais…
[4]
Mark Kirkby:
"O acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos
sancionatórios"
[5] Artigo 112.º Atos normativos: 5. Nenhuma lei pode criar outras
categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de,
com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos.
[6] Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente pp.
217ss
[7] Nas palavras de Mark Kirkby.
[8] Também é reconhecida
legitimidade às Associações de defesa do ambiente (artigo 2.º/2 da LAP)
[9] Contrapõe-se a esta, a Teoria da
Incorporação que preceitua que os atos pré-contratuais se dissolvem no contrato
e só são impugnáveis através deste.
[10] Como se retirava do artigo 185.º
Código de Procedimento Administrativo, entretanto revogado com a entrada em
vigor do CCP (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro)
[11] Ainda que não esteja previsto na
lei um ato expresso prévio à celebração do contrato, depreende-se que existiu
um, que está implícito na celebração do contrato pela Administração: a decisão
de contratar.
Graça Silva, 19629