FORÇA JURÍDICA DA DIA
Uma das principais alterações do novo Regime de Avaliação
de Impacte Ambiental (RAIA) diz respeito à força jurídica da respetiva decisão de AIA. 1
A questão em
apreço é de fulcral importância por diversos motivos, nomeadamente porque é esta
que vai determinar as consequências advenientes do procedimento de AIA sobre o
licenciamento ou autorização de um determinado projeto, estabelecendo, também,
a relevância da avaliação ambiental em si mesma. Neste campo, o legislador
nacional procedeu à previsão de um regime bastante garantístico que vai para
além do que tinha sido previsto pela Diretiva Europeia,
visto que esta última não procedia à previsão da vinculatividade da DIA,
apenas concretizando a obrigatoriedade de ponderação dos impactes sobre o ambiente.
No atual regime português (DL n.º 151-B/2013), a Declaração de Impacte Ambiental
configura uma condição de existência de um futuro ato de licenciamento ou de
autorização, relativo aos projetos sujeitos ao procedimento de AIA. Contudo,
aquela não constitui apenas uma condição de existência, mas também uma condição
de conformação do próprio conteúdo do ato em causa 2. Quais as
consequências a retirar destas afirmações? É o que se
pretende esclarecer na presente exposição.
Em primeiro
lugar, importa referir que, no âmbito do DL nº 186/90, alterado pelo DL nº 287/97, o
artigo 6.º/1 prescrevia que a entidade competente para a aprovação do projeto, embora
devendo ter em consideração o parecer de AIA, mantinha a possibilidade de
licenciar ou autorizar projetos merecedores de decisão de AIA em sentido negativo. Além
disso, o artigo 5.º do diploma em questão apenas se referia a um “parecer do
membro do Governo responsável pela área do ambiente”.
A questão da
vinculatividade da decisão adotada em sede de AIA começou a ser bastante
discutida na doutrina. Estaríamos perante um parecer vinculativo ou meramente
facultativo? O Professor Colaço Antunes entendia que a decisão tomada, nestes
termos, deveria ser considerada um parecer vinculante, na maioria dos casos,
atendendo a uma concepção objetiva da atividade administrativa discricionária,
que praticamente excluía a liberdade de apreciação pela Administração. 3 A esta posição opôs-se a Professora Maria da Glória Garcia, defendendo a aplicação
do artigo 98.º/2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), considerando o
resultado da AIA como um parecer obrigatório mas não vinculativo, na medida em
que considerá-lo nesses termos seria despojar, na totalidade, o “órgão decisório que aprova o
projeto sujeito a parecer de toda a capacidade de intervenção autónoma”,
impossibilitando-o, também, de “intervir na partilha de custos de incerteza que
de um parecer técnico pode resultar”. 4 Estaríamos, portanto, perante
um parecer que constituía uma mera formalidade essencial, na medida em que, apesar
de configurar um procedimento exigido por lei, não era exigível que fossem
seguidas as suas conclusões pelo órgão competente para a decisão.
A revisão
legislativa posterior apontava já, contudo, para a atribuição de vinculatividade ao
respetivo parecer, o que, por sua vez, reforçava decisivamente a força jurídica
da decisão da AIA, apenas permitindo à entidade licenciadora proceder à
autorização ou licenciamento do projeto em questão se a respetiva decisão fosse favorável ou
favorável condicionada, pressupondo nesta última, o cumprimento das condições
impostas.
Estas
divergências doutrinárias acabaram, portanto, por ser superadas na década
seguinte com a aprovação do DL n.º 69/2000 que procedia à consagração da força
jurídica vinculativa da DIA. Esta solução, conforme exposto, está atualmente
consagrada no artigo 22.º do RAIA, visto o seu número 1 prescrever a dependência
da autorização ou licenciamento do projeto da existência de uma DIA favorável
ou favorável condicionada.
Este diploma
procedeu à transposição da Diretiva 97/11/CE, do Conselho,
prevendo o caráter vinculativo da decisão
ou, na designação do diploma “Declaração de Impacte Ambiental”. Este prescrevia a existência de três níveis ou três possibilidades de conteúdo da declaração ambiental:
favorável, condicionalmente favorável e desfavorável, determinando que o ato de
licenciamento ou autorização só poderia prosseguir após decisão de AIA, nos
primeiros dois sentidos ou eventualmente por deferimento tácito.
Esta alteração
legislativa é extremamente importante, visto reforçar significativamente o
papel e o significado da AIA e a natureza preventiva intrínseca ao procedimento
de AIA, com vista ao licenciamento ou autorização de determinado projeto. Sendo
assim, passará a ser condição necessária a sua compatibilidade ambiental ou,
pelo menos, a sua não incompatibilidade ambiental. Neste âmbito, serão também,
e necessariamente, reforçadas as competências dos órgãos responsáveis pela AIA. Esta alteração tem uma grande
influência não só em termos jurídicos, mas também em termos de conteúdo
político e estratégico, visto a atividade ficar dependente do parecer das
autoridades ambientais, controlando decisivamente o impacto ambiental negativo
do projeto.
Toda esta
construção implica, coerentemente, a cominação e nulidade dos atos
administrativos que procederem à aprovação de um projeto que tenha sido objeto
de decisão desfavorável por parte da AIA. Tendo em conta a força jurídica
conferida à decisão de AIA, na medida em que esta torna inviável a aprovação de
projeto merecedor de decisão desfavorável, será lógico a previsão de nulidade como
sanção para os atos de licenciamento que aprovem um determinado projeto em
desrespeito daquela. Desta forma, assegura-se que os projetos sujeitos a um
procedimento prévio de AIA não sejam aprovados sem uma decisão favorável ou
favorável condicionada pelas autoridades competentes. Foi precisamente esta a
solução encontrada e prevista pelo legislador, no regime português, conforme
prescreve o artigo 20.º/3 do RAIA.
O Professor
Vasco Pereira da Silva considera que a decisão de impacte ambiental é um ato
administrativo, inserido numa relação administrativa duradoura, pressuposto de
um futuro ato licenciador, no âmbito
de um procedimento administrativo complexo constituído por atos sucessivos e
com relevância autónoma. 5 Sendo assim, o Professor entende que a
avaliação de impacte ambiental não é apenas um ato opinativo, um mero parecer,
mas uma verdadeira decisão jurídica de ponderação de interesses que, por sua
vez, procede a uma análise dos custos e benefícios de uma certa atividade,
tendo em consideração critérios ambientais.6 Do exposto retiram-se
importantes consequências no que diz respeito à recorribilidade, em termos
contenciosos, da decisão, quando lesiva dos direitos dos particulares,
configurada como ato administrativo, quer nos termos do artigo 120.º do CPA,
produtora de efeitos jurídicos, quer nos termos do artigo 268.º/1 da CRP,
suscetível de lesar os direitos dos particulares. Segundo o Professor, a questão da vinculatividade não se coloca num plano interno, mas sim externo, isto é, no âmbito de atos produtores de efeitos lesivos.
É necessário
esclarecer que a vinculatividade da DIA tem o seguinte sentido:
aquando de uma decisão desfavorável, é obrigatório o indeferimento do projeto,
pelo que o licenciamento ou autorização estarão impedidos, na medida em que se conclui que aquele
provocaria impactes ambientais significativos; aquando de uma decisão favorável
ou favorável condicionada, não é obrigatório o licenciamento ou autorização do
mesmo. Neste último caso, o projeto pode
prosseguir através do ato autorizativo ou de licenciamento, mas não tem de prosseguir. É, neste sentido, que
diversos autores configuram a DIA como um “parecer conforme favorável”7,
na medida em que, tendo um conteúdo positivo, o parecer apenas se limita a conformar o sentido de uma eventual
decisão posterior. A vinculatividade da DIA, deste modo, apenas se verificaria num sentido, isto é,
quando fosse negativa. Esta não funcionaria aquando de uma decisão positiva, na
medida em que não impediria a entidade competente de indeferir o pedido de
licenciamento ou de autorização, motivada por outros motivos que não
os respeitantes aos impactes ambientais derivados do projeto.
É, contudo, bastante questionável que a DIA configure um mero parecer, não
qualificado como vinculativo, mas apenas como “conforme favorável”. A adotar
este entendimento, estar-se-ia a fazer uma distinção conceptual entre a DIA
desfavorável, com efetivos efeitos vinculativos, e a DIA favorável ou favorável
condicionada que apenas procedia à previsão de indicações no que diz respeito
aos termos de um eventual licenciamento ou projeto autorizado.
O Dr. Tiago Antunes considera que tal distinção não
fará sentido visto não se verificar uma lógica de “vinculativo vs não
vinculativo”, consoante o sentido da decisão, posição com a qual concordo. 8 O autor
entende que a DIA condiciona verdadeiramente e, em todos os casos, o desfecho
do procedimento em causa, influenciando o conteúdo concreto do ato final do
mesmo. É precisamente essa influência que pode assumir diversos graus de
intensidade e que, portanto, em alguns casos procede à predeterminação imediata do ato final, no sentido do indeferimento,
enquanto noutros, admite um determinado tipo de ato (de deferimento),
estabelecendo os termos em que pode ser praticado e que dele é dependente.
Nestes termos, a considerar uma distinção consoante o sentido da decisão em
questão, admitir-se-ia a diferenciação entre uma “vinculatividade modulada ou
alternativa” 9 No caso de a DIA não existir ou ser
desfavorável, verifica-se um efeito
preclusivo, na medida em que impede o respetivo licenciamento ou
autorização, que se contrapõe a um efeito
confirmativo, aquando de uma DIA favorável ou favorável condicionada,
prescrevendo as condições e circunstâncias necessárias à autorização ou
licenciamento do projeto. 10
O artigo 22.º/3 do
RAIA procede à prescrição de nulidade, no caso de violação das regras
previamente expostas, reforçando e reafirmando a autoridade e força vinculativa
da DIA. Sendo assim, quer os atos de licenciamento ou de autorização praticados
sem prévia avaliação ambiental positiva, quer os atos que ignorem e contrariem
os requisitos prescritos previstos na DIA, não têm qualquer valor jurídico. De
referir que este regime é aplicável não apenas à DIA, mas também, e nos mesmos
termos, à decisão sobre a conformidade ambiental do projeto de execução, na
medida em que o artigo 22.º equipara estas duas decisões, conferindo-lhes a
mesma força jurídica e respetivas consequências de violação. 11 Estamos perante uma invalidade dos atos administrativos que se encontram a
jusante da respetiva DIA.
Importa, também, referir que o RAIA nada prevê quanto à invalidade da DIA em si mesma.
O Dr. Tiago Antunes considera que é de remeter para as regras gerais do
CPA o regime de invalidade, tendo em conta a falta de um regime próprio previsto
ou, ainda, a atribuição de um desvalor específico à DIA. 12 Sendo
assim, serão de aplicar os critérios e efeitos prescritos nos artigos 133.º e
seguintes do CPA. O autor realça, porém, que estando em causa práticas de
determinados atos administrativos subsequentes à DIA dependentes da sua
emissão, a invalidade desta inquinará, em princípio, aqueles, por invalidade
consequente. Além disso, há determinada jurisprudência e doutrina que entende
que, ao ter-se em conta o princípio do aproveitamento dos atos ou por via da
degradação de formalidades essenciais não essenciais e o vício em causa que disser
espeito à DIA for de natureza formal (vícios de forma stricto sensu ou vícios de procedimento), tenderá a
desconsiderar-se determinados vícios, nomeadamente nas situações em que o
resultado obtido poderia ser outro ou em que o cumprimento da formalidade
omitida não possa influenciar o conteúdo do ato, de caráter renovável.
A excecionalidade e importância da consagração da nulidade prevista no artigo 22.º/3 é novamente revelada pelo fato da regra geral no âmbito dos atos administrativos ser a da anulabilidade, conforme prescrito no artigo 135.º do CPA.
A excecionalidade e importância da consagração da nulidade prevista no artigo 22.º/3 é novamente revelada pelo fato da regra geral no âmbito dos atos administrativos ser a da anulabilidade, conforme prescrito no artigo 135.º do CPA.
Todo este regime
demonstra claramente a relevância do procedimento de avaliação de impactes
ambientais, no ordenamento jurídico português. Se não se verificar uma
avaliação ambiental positiva, o projeto não poderá avançar. Caso, a DIA seja
favorável, mas imponha determinadas condições, a respetiva licença ou
autorização terá de respeitá-las integralmente. Desta forma, pode concluir-se
que uma avaliação ambiental positiva não configura apenas uma condição da
prática do ato de licenciamento ou autorização, como constitui condição do
conteúdo desse ato, dada a obrigatoriedade de observância das condicionantes exigidas
na DIA (22.º/2), conforme já anteriormente referido e desenvolvido.
1
A saber: Avaliação de Impacte Ambiental.
2 Cfr. SILVA,
Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito
– Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, página 163.
3 Cfr. LUÍS FILIPE
COLAÇO ANTUNES, O procedimento administrativo de avaliação de impacto
ambiental, cit., pp. 703-704.
4 Cfr. MARIA DA
GLÓRIA GARCIA, “Arguição da Dissertação de Doutoramento em Ciências
Jurídico-Políticas do Mestre Luís Filipe Colaço Antunes”, cit., p. 842.
5 Cfr. SILVA,
Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito
– Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, página 165.
6 Cfr. SILVA,
Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito
– Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, página 165.
7 ARAGÃO,
Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, Presente e Futuro da AIA em Portugal, in
Revista do CEDOUA, 1, ano I,
1998, página 83 e ss.
8 Cfr. ANTUNES;
Tiago, Carlo Amado Gomes, Revisitando a Avaliação de Impacte Ambiental, ICJP, Março
de 2014, página 269.
9 Cfr. ANTUNES;
Tiago, Carlo Amado Gomes, Revisitando a Avaliação de Impacte Ambiental, ICJP, Março
de 2014, página 269.
10 Poderia
colocar-se a questão de saber se a DIA favorável ou favorável condicionas, nos procedimentos
administrativos de controlo prévio, estruturados em duas fases, em primeiro
lugar a licença ou autorização de instalação do projeto e, em segundo, a licença
ou autorização da exploração, a decisão deve anteceder o primeiro ou segundo
momento. É de referir que relativamente a certos projetos está legalmente
previsto a necessidade de decisão como condição prévia ao início da exploração
(cfr. artigo 11.º do Regime das Emissões Industriais, aprovado pelo Decreto-lei
n.º 127/2013, de 30 de Agosto). Porém, no que concerne à DIA, o legislador não
prescreveu regra semelhante, pelo que, na falta de previsão, será de
considerar, tendo em conta o artigo 22º do RAIA, que aquela deverá ser prévia
ao licenciamento ou autorização da instalação e não somente da exploração.
Conclusão semelhante retirar-se-ia do artigo 11º do RAIA, na medida em que
admite a simultaneidade do procedimento de AIA com o procedimento de
licenciamento do projeto em causa, devendo entender-se, neste caso, que o
legislador se refere à instalação, como procedimento inicial.
11 Cfr. ANTUNES;
Tiago, Carlo Amado Gomes, Revisitando a Avaliação de Impacte Ambiental, ICJP, Março
de 2014, página 267.
12 Cfr. ANTUNES;
Tiago, Carlo Amado Gomes, Revisitando a Avaliação de Impacte Ambiental, ICJP, Março
de 2014, página 269.
Bibliografia
ANTUNES, Luís Filipe Colaço, O
Procedimento Administrativo de avaliação de impacto ambiental;
ANTUNES; Tiago,/GOMES Carlo Amado, Revisitando
a Avaliação de Impacte Ambiental, ICJP, Março de 2014 (e-book);
ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo
Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, Presente
e Futuro da AIA em Portugal, in Revista
do CEDOUA, 1, ano I, 1998;
ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, Regime Jurídico de Impacte Ambiental em Portugal, CEDOUA, 2002;
ARAGÃO, Alexandra/DIAS, José Eduardo Figueiredo/BARRADAS, Maria Ana, Regime Jurídico de Impacte Ambiental em Portugal, CEDOUA, 2002;
GARCIA, Maria da Glória, Arguição da
Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas do Mestre Luís
Filipe Colaço Antunes;
GASPAR, Pedro Portugal, A Avaliação de
Impacto Ambiental, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 14,
Dezembro de 2000;
GOMES, Carla Amado, O Procedimento de Licenciamento Ambiental
Revisitado, in Estudos de
Direito do Ambiente e de Direito do Urbanismo, Lisboa, ICJP, 2010;
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002.
Maria Armanda Santos, n.º 20927
4º Ano, Turma A, Subturma 1
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