terça-feira, 22 de abril de 2014

O Direito Administrativo põe, o Direito Privado dispõe?



“Não poríamos a mão no fogo pelas nossas opiniões, não temos assim tanta certeza delas. Mas talvez nos deixemos queimar para podermos ter de mudar as nossas opiniões."

Friedrich Nietzsche

Neste primeiro e atrasado Post iremos abordar a problemática do efeito conformador[1] dos actos autorizativos ambientais, procurando apresentar de forma breve e abstracta, isto é, abordando a questão atendendo apenas aos seus traços essenciais, uma linha argumentativa, diferente da que tem sido apresentada na doutrina nacional, capaz de justificar a prevalência dos instrumentos de regulação administrativa das relações de vizinhança, quando existam, sobre os institutos de direito privado, como por exemplo a acção negatória, artigo 1346.º de C.C., ou a responsabilidade civil, artigo 483.º C.C.  

O tema que nos propomos analisar poderá, derivado do seu objecto exíguo, ser classificado, utilizando o contorcionismo verbal do legislador na redacção do artigo 4.º nº1, alínea f) do ETAF, como de “especificamente específico”, no entanto atendendo por um lado, às recentes propostas de reconstrução dogmática das relações jurídicas administrativas multipolares[2], e por outro, às não tão recentes construções doutrinárias relativas, a restrições não expressamente autorizadas de direitos fundamentais[3] e aos direitos subjectivos fundamentais[4], julgamos ser pertinente e relevante o seu tratamento, uma vez que se abriu a possibilidade de uma nova argumentação para o efeito conformador de certa forma diferente e alternativa da apresentada pela doutrina Portuguesa nomeadamente pelos Professores Gomes Canotilho[5] e Filipa Calvão[6], sendo que em nosso entender não se tratará de um mero exercício de “arejamento periódico”, utilizando a expressão de Marcello Caetano, uma vez que, as diversas janelas doutrinárias abertas provocaram uma corrente de ar que fez esvoaçar as ideias exigindo-se uma nova arrumação. O conceito de visão em Paralaxe comumente utilizada em astronomia, ilustra de forma bastante precisa a possibilidade de uma nova linha de argumentação, a ideia é a de que um mesmo objecto visto de duas posições diferentes cria a ilusão de se localizar em lugares distintos, ou seja a sua posição no espaço quanto observado do lugar X é diferente de quando observado do lugar Y. Assim sendo o objecto de análise do presente Post, em si, não sofreu qualquer alteração desde que o seu tratamento foi levado a cabo pelos Professores referidos, no entanto as alteração em matéria de entendimento doutrinário de determinados aspectos dos direitos fundamentais bem como em matéria de relações jurídicas multilaterais, alteram o ponto de observação do objecto o que origina uma diferente visão do problema.

            É da praxe iniciar-se a abordagem deste tema recorrendo-se ao instrumento retórico da questão hipotética, não seremos excepção, no entanto esta será mais longa e detalhada do que o habitual de forma a evitar o elevado número de sub-hipóteses, que nos textos doutrinários, geram aquilo que se pode denominar eufemisticamente de floresta de argumentação dilatória, que mais das vezes serve apenas ou para fugir ao cerne da questão, ou então para esconder uma débil resolução do problema, a qual passa invariavelmente por remeter para o legislador a resolução do mesmo, acabando por nunca ser dada uma resposta cabal para as situações em que o legislador nada diz.

Tendo António sido autorizado, por um acto administrativo que não padece de nenhuma invalidade e ainda menos de um qualquer problema de eficácia, diga-se que estamos perante um Adónis dos actos administrativos, a emitir um valor X de dióxido de carbono, nunca tendo António ultrapassando esse valor X, pode Bento, seu vizinho, não se encontrando legalmente previsto o efeito preclusivo da autorização, intentar contra ele uma acção negatória ou de responsabilidade civil fundada no seu direito fundamental ao ambiente, lesado com a emissões de valor X?

            A resposta da grande maioria da doutrina à questão apresentada seria em sentido afirmativo, incluindo, como já supra indiciado, para aqueles autores que à primeira vista aparentam defender a existência de um efeito legalizador, ou seja nesta situação a existência de um acto autorizativo não afastaria a possibilidade de Bento lançar mão dos mecanismos de tutela jurídico-privados.

            No entanto julgamos que a resposta adequada à questão deverá ser em sentido negativo, o que nos obriga a construir uma linha argumentativa capaz de sustentar que em caso de existência de um acto autorizativo, fica afastada a possibilidade de recorrer a mecanismos de tutela jurídico privados, mesmo nos casos em que o legislador não explicitou esse afastamento.

            Em primeiro lugar a discussão sobre o efeito conformador do acto nas relações de vizinhança, deve ser tida desconsiderando o acto, sob pena de se cometer o mesmo erro que o mal-afortunado tolo do provérbio chinês, que olha para o dedo quando lhe apontam a lua, a questão deverá ser colocada ao nível do plano legislativo, uma vez que os efeitos a produzir pelo acto se encontram pré-determinados legalmente, sendo que até mesmo a sua dimensão criativa será resultado de uma margem de livre decisão conferida pela norma[7], portanto mais relevante do que atendermos ao acto administrativo é ter em conta o programa normativo[8], isto é a norma que prevê a necessidade de autorização, citando Lenine, um correcto entendimento da problemática em análise só é possível dando "Um passo atrás para dar dois à frente".


            Centrando a questão no plano legislativo, analisaremos agora, o problema que denominamos de duplo grau de restrição, neste ponto do Post, utilizando a metáfora, náutica, perderemos por algum tempo a costa doutrinária, e procuraremos navegar por águas desconhecidas com recurso essencialmente a rudimentares instrumentos lógico-formais e a uma terminologia criativa. 

            Ao prever a necessidade de um acto autorizativo ambiental para o exercício de uma determinada actividade o legislador, estabelece uma restrição, através de uma proibição sobre reserva de permissão[9] ao direito fundamental de propriedade, a qual se deverá fundamentar, sob pena de se estar a estabelecer um restrição arbitrária, num dever de protecção preventiva do direito fundamental ao ambiente, ou seja o legislador antecipa normativamente a solução[10] para a colisão de 1º grau entre o direito fundamental de propriedade e o direito fundamental ao ambiente, estabelecendo a prevalência do primeiro em relação ao segundo. Nesta primeira fase o legislador estabelece uma solução rígida para a colisão.

            No entanto a restrição de 1º grau não é absoluta, só o seria se o legislador proibisse totalmente aquela actividade, o que origina um 2º grau de resolução da mesma colisão de direitos fundamentais, o qual ocorre quando o particular requere uma autorização à administração.

Neste segundo momento o legislador flexibiliza a solução consagrada no 1º grau, prevendo um conjunto de situações, de forma expressa ou atribuindo uma certa margem de discricionariedade à administração, em que a solução de 1º grau deverá ser afastada, ou seja, em que a resolução da colisão deverá ser no sentido de dar prevalência ao direito fundamental de propriedade sobre o direito fundamental ao ambiente, que havia prevalecido no 1º grau, assim sendo de forma indirecta e implícita o legislador estabelece uma restrição do direito fundamental ao ambiente proporcional à medida da prevalência do direito fundamental de propriedade, a qual é diametralmente inversa à restrição expressamente consagrada pelo legislador no 1º grau.

            Assim sendo e sintetizando o exposto em nosso entender sempre que o legislador estabelece a necessidade de uma acto autorizativo ambiental, tal significará sempre a consagração de duas restrições, uma de 1º nível, rígida, e uma de 2º nível, posterior à participação da Administração em virtude de remissão legal que é feita para esta, que poderá ser no sentido de confirmar a restrição de 1º nível ou então de concretizar uma restrição ao direito fundamental primariamente protegido com a criação do obstáculo jurídico autorização.

             Adaptando ao caso hipotético que construímos, devemos concluir que o acto autorizativo favorável a António, concretizou uma restrição no concreto direito fundamental ao ambiente subjectivamente considerado de Bento e de todos quanto se vejam afectados pelo acto administrativo.

            Assim sendo, mais importante do que se falar do efeito legalizador ou do efeito de preclusão, pois estes serão mera consequência, é ter-se em conta o Efeito concretizador da restrição de 2º nível de um direito fundamental abstractamente e implicitamente prevista na norma que exige a autorização, pois em nosso entender é este efeito que justificará o efeito conformador das relações de vizinhança.

            Em complementaridade às ideias expostas há que acrescentar que a nossa linha argumentativa só se completa com a ideia de que a constituição estabelece uma ordem unitária de direitos fundamentais[11], logo, e citamos propositadamente Mafalda Carmona, uma vez que a mesma entende que o acto administrativo é incapaz de conformar relações de vizinhança, “a aplicação de uma norma de direito privado num sistema unitário de direitos fundamentais implica que não se está a aplicar apenas essa norma mas todo o direito, neste se incluindo a Constituição”[12], daqui decorre, que levada às ultimas consequências a tese da ordem unitária implica que tal como os direitos subjectivos[13], também as restrições aos mesmos deixem de ser apelidadas, ultrapassando livremente as fronteiras estabelecidas pelos ramos de direito, o que significará que uma restrição do direito fundamental ao ambiente, concretizada por acto administrativo, tem como consequência a sua compressão também no âmbito do direito privado.  

            Assim sendo em nosso entender a situação de facto do particular destinatário da restrição concretizada pelo acto autorizativo não é passível de subsunção nas normas dos artigos 483.º C.C. e 1346 C.C., uma vez que tendo o direito fundamental ao ambiente sido restringido, este perde a sua força jurídica perante o autorizado na medida da prevalência do direito fundamental de propriedade daquele. 

            Nesta construção o que ocorre é a inexistência de um direito que garanta a protecção em relação à lesão uma vez que o acto administrativo autorizativo concretizou uma restrição ao direito.

Com este post pretendemos tão só contribuir para uma melhor justificação do efeito conformador do acto administrativo, não tendo abordado o segundo problema habitualmente considerado que é o da responsabilidade pelo dano, mesmo que por facto lícito, que no fundo é a matéria mais dada a inovações e impulsos criativos, por entendermos que esta é uma temática em que é necessário ter como lema a subversão da 11.ª tese de Marx sobre Feuerbach[14], ou seja é necessário interpretar antes de modificar, uma vez que debilidades ao primeiro nível, enfermam qualquer solução a que se chegue no segundo.

            Em suma e dando resposta à pergunta que dá título a este pequeno texto, o Direito Administrativo “põe”, concretizando uma solução normativa abstractamente prevista para uma determinada colisão de direitos fundamentais, e o Direito Privado, em virtude de um entendimento unitário e não adjectivado de direito subjectivo ao ambiente, não se “opõem” à prévia ponderação levada acabo pelo legislador democraticamente legitimado.

Julgamos ser esta a melhor forma de solucionar o problema evitando-se desde logo colocar a tónica numa pretensa antinomia normativa resultante de uma valoração diferenciada da ilicitude pelos diferentes ramos do direito, análise que funciona numa lógica que torna obrigatório determinar a prevalência de um dos ramos relativamente aos demais, o que acaba por gerar no interprete uma angustia da decisão que o paralisa. Quando colocados perante uma escolha entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde, existe sempre uma terceira hipótese que passa por escolher Robert Louis Stevenson, no fundo foi o que procuramos fazer ao propor uma resolução do problema baseada nos direitos fundamentais, isto é remetendo para um plano superior e consequentemente conformador da aplicação de todas as normas da ordem jurídica independentemente do seu ramo de origem.  

 

José Miguel de Freitas Toste, nº 20876

Bibliografia:

CALVÃO, Filipa Urbano - Direito do ambiente e tutela processual das relações de vizinhança. In VAZ, Manuel Afonso; LOPES, AZEREDO J.A. (Coord.) - Juris et de jure - nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1998. ISBN 972-8069-21-9. p.573-602.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, in BFDUC, vol. LXIX, 1993.

CARMONA, Mafada - O acto administrativo conformador de relações de vizinhança : Almedina, 2011.

GOMES, Carla Amado - Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2014.

MARQUES, Francisco Paes - As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, (contributo para a sua compreensão substantiva), Almedina, 2011.

NOVAIS, Jorge Reis - As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição, Coimbra, 2010.

SILVA, Vasco Pereira da Silva - Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003.

SILVA, Vasco Pereira da Silva - Verdes são também os direitos do Homem (Publicismo, associativismo e privatismo no Direito do Ambiente), Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra, 1999, pág. 127 e ss.


[1] Alguma doutrina fala em efeito legalizador. Sobre as questões de terminologia relacionadas com o tema ver, CARMONA (2011) p.28
[2] MARQUES (2011) p.217 e ss., em especial as teses, p.435 e ss. e (2012) p.55
[3] NOVAIS (2010) p.569 e ss.
[4] CARMONA (2011) p.211 e SILVA (1999) p.135 e ss.
[5] CANOTILHO (1993)
[6] CALVÃO (1998)
[7] MARQUES (2011) p.82 e ss.
[8] MARQUES (2011) p.287 e ss.
[9] GOMES (2014) p. 114 e ss.
[10] NOVAIS (2010) p.842 e ss.
[11] CARMONA (2011) p.210
[12] CARMONA (2011) p.210
[13] SILVA (1995), p.214

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O Princípio da Precaução e o Princípio do Poluidor-Pagador

O Princípio da Precaução e o Princípio do Poluidor-Pagador


Todos temos consciência que a sociedade actual é uma fonte de riscos para o meio ambiente (e, em muitos aspectos, contribuímos para tal), tendo estes tendência para piorar de forma linear relativamente à evolução natural que se prevê. Essas desvantagens são a contrapartida directa dos efeitos benéficos que nos traz essa mesma evolução, sejam eles tecnológicos, científicos, financeiros ou outros, pelo que, muitas vezes, existe a tendência para “fechar os olhos” aos efeitos negativos daí resultantes, principalmente por parte daqueles que mais aproveitam dessas actividades (que, muitas vezes, não são os principais prejudicados pelos efeitos nocivos decorrentes das mesmas, pelo menos de forma directa).

Assim, e para evitar esta atitude de desvalorização dos danos resultantes de tal actuação, é necessária a imposição de princípios, normas e regras que regulem estas actividades e que exijam que alguém responda por estes riscos e prejuízos decorrentes das mesmas para o meio ambiente e, consequentemente, para terceiros que, pouco ou nada poderão aproveitar da actividade em questão.

Para que haja uma breve contextualização histórica, este assunto toma particular importância em duas situações distintas, mas no mesmo ano de 1972. De uma forma mais geral, materializando o Princípio da Prevenção de que falaremos já de seguida, na Declaração de Estocolmo, onde se podiam ler ideias como "Deve-se encorajar a luta legítima dos povos de todos os países contra a poluição." (Princípio 6), "Os Estados devem tomar as medidas possíveis para impedir a poluição dos mares com substâncias suscetíveis de porem em risco a saúde humana, prejudicarem os recursos biológicos e a vida dos organismos marinhos, e danificarem as belezas naturais ou interferirem com outros usos legítimos do mar." (Princípio 7) e "Os Estados devem cooperar no desenvolvimento do Direito Internacional no que concerne à responsabilidade e à indemnização das vítimas da poluição e de outros prejuízos ambientais que as atividades exercidas nos limites da jurisdição destes Estados, ou sob seu controlo, causem às regiões situadas dos limites da sua jurisdição." (Princípio 22). A outra situação, esta já bastante concisa quanto ao Princípio do Poluidor-Pagador, é a da Recomendação C(72)128, de 26 de Maio da OCDE (Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico) que referia "O PPP significa que o poluidor deve suportar os custos do desenvolvimento das medidas de controle da poluição decididas pelas autoridades públicas para garantir que o ambiente esteja num estado aceitável, ou, noutras palavras, que os custos de tais medidas sejam refletidos nos preços dos bens ou serviços que causam poluição na sua produção ou/e consumo."
Esta preocupação está, a nível internacional, actualmente presente no Art. 191º do TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), que substituiu o Art. 174º do TCE ("Tratado da Comunidade Europeia") e a nível nacional no Art. 66º da Constituição da República Portuguesa, bem como nas leis de vários outros países, como é exemplo o Art. 225º da Constituição Federal Brasileira.


“Mais vale prevenir que remediar”

Para dar inicio a este tema temos, forçosamente, que começar por falar no Princípio da Prevenção que é a base da ideia de protecção do meio ambiente e, no fundo, o núcleo do Direito Ambiental. O Princípio da Prevenção, para que se consiga aplicar, exige a capacidade de antecipação deste tipo de actuação potencialmente danosa para o ambiente e a identificação dos meios que melhor consigam responder às situações de risco em questão. Tratam-se, portanto, de medidas utilizadas para evitar o dano ou evitar o agravamento de um dano já iniciado.

Podemos fazer uma diferenciação entre dois tipos de medidas de prevenção: as medidas de prevenção primárias, que visam evitar a ocorrência de um dano que ainda não ocorreu e existe apenas uma ameaça eminente, e as medidas de prevenção secundárias, que pretendem impedir que um dano já verificado se venha a agravar, ou seja, são medidas de “minimização” que surgem após o dano e pretendem evitar o agravamento do mesmo.

Entenda-se que existe sempre uma ideia de subsidiariedade entre as medidas de prevenção e as de reparação, que apenas devem ser aplicadas quando as primeiras não forem possíveis ou se mostrarem insuficientes.

Embora a acção preventiva seja sempre mais eficaz que a acção reparadora, tanto em termos económicos como de resultado final, não se pretende com isto desvalorizar as medidas de reparação dos danos, até porque estas acabam por ter uma dupla funcionalidade. Além de serem reparadoras, nos termos que falaremos mais adiante, estas medidas são, por si só, dissuasoras de comportamentos ilícitos. O agente (leia-se poluidor), ao ter conhecimento que existe uma resposta àquele comportamento (provavelmente mais dispendiosa para ele que actuar de forma divergente daquela e de acordo com o que é mais favorável para o ambiente) acabará por não se sujeitar às sanções aplicáveis ao comportamento poluidor. Desta forma, uma norma reparadora acaba por ter, indirectamente, uma função preventiva.

Assim, podemos considerar que o Princípio da Prevenção representa um processo de educação e consciencialização, processo esse que se mostra ser de médio/longo prazo, pelo que o princípio da prevenção não pode (nem deve) “valer por si só”. Para que o seu fim seja conseguido, deve acompanhar-se sempre de outros princípios que prosseguem o mesmo fim e que têm presente a ideia da responsabilidade por danos ambientais. Dos vários princípios que o acompanham (princípio da reparação na fonte, princípio do desenvolvimento sustentável, etc.) escolhemos, para esta análise, o que nos parece ser o que melhor idealiza a questão da responsabilidade por danos ambientais e também o que melhor consciencializa para os problemas daí resultantes: O Princípio do Poluidor-Pagador (PPP).


"Quem estraga velho, paga novo"

O Princípio do Poluidor-Pagador, além de ser o princípio inspirador do regime da responsabilidade ambiental é uma importantíssima ferramenta no que respeita à preservação do ambiente pois tem como finalidade internalizar (no poluidor) os custos resultantes da reparação dos danos provocados pela utilização abusiva de recursos naturais. Isto é, é imputada ao próprio poluidor (agressor) a responsabilidade pelos danos causados por este ao meio ambiente, tornando-o responsável pela eliminação (ou, no mínimo, redução) dos mesmos. Assim, os sujeitos económicos que beneficiam de determinada actividade poluente devem ser os responsáveis pela compensação dos prejuízos (externalidades negativas) que daí resultam para todos.

Este conceito tem vindo a ser alargado, de forma a que, além de ficar responsável pelos prejuízos resultantes da actividade em questão, o poluidor-pagador, deve também custear a reconstituição da situação anterior e ainda as medidas de prevenção que se considerem necessárias para impedir ou minimizar comportamentos semelhantes aos dele.

Esta ideia desempenha um papel decisivo numa estratégia que tem como objectivo a melhor utilização dos recursos. A imputação dos custos de reparação dos danos causados pelos agentes poluidores aos mesmos obriga-os, de certa forma, a procurarem formas menos poluentes de desenvolverem as suas actividades pois, financeiramente, acaba por ser mais sustentável para eles fazerem-no. Esta filosofia de internalização de custos é a forma mais justa de resolver o problema e acaba por ser também, provavelmente, a mais eficaz.

Cabe ainda deixar claro, antes de avançarmos, que as normas reparadoras apesar de corresponderem a uma intervenção a posteriori não pretendem, de todo, representar uma “compra de autorização para poluir”. Estas normas têm como objectivo primário dissuadir o agente-poluidor de praticar determinado comportamento e, caso este objectivo se mostre falhado, garantir que esse mesmo agente, no mínimo, “compensa” o ambiente pelo estrago que causou. Ou seja, o  pagamento trata-se apenas de uma consequência do acto danoso praticado pelo sujeito e que pretende “indemnizar o meio ambiente” pelos danos causados. O intuito da ideia, o seu fim último, é sempre a protecção do ambiente, tentando dissuadir o agente daquele comportamento, e nunca autorizá-lo a praticar o facto, desde que aceite as consequências.
Não existe qualquer ratio de “taxa para poder poluir” nestas normas.

Há que fazer uma distinção entre o até aqui falado poluidor-pagador e o utilizador-pagador. Estas duas ideias são diferentes no sentido em que é exigido ao utilizador de recursos naturais o pagamento de um determinado valor pela simples utilização dos mesmos, independentemente da poluição, enquanto que no caso do poluidor-pagador, apenas há lugar a este pagamento quando existe efectivamente o dano causado ao meio-ambiente pela poluição resultante da sua actividade.

Após percebermos em que consiste esta questão, há que saber quem é esse mesmo poluidor-pagador o que, nos casos concretos, nem sempre é fácil identificar. De uma forma abstracta e simples quem deve pagar é quem polui. No entanto, cabe analisar cada situação e esta definição nem sempre se mostra eficiente. Quando se trata de poluição decorrente de um processo produtivo de um determinado bem, então o poluidor será, sem grandes dúvidas, o produtor desse mesmo bem. Mas se for o produto em si que é poluente, por exemplo, quando apenas há poluição no momento da utilização, o poluidor será quem o produz ou quem o utiliza? Isto é, se a produção em si não for poluente, ainda que o produtor tenha a consciência de que mais tarde aquele produto, nem que seja pela sua decomposição, irá causar poluição, a verdade é que, da sua actuação, não resultou qualquer dano para o ambiente.
O mais próximo que temos de uma resposta a este problema é o disposto na Recomendação do Conselho 75/436, que, no fundo, envereda pela solução mais simples: o poluidor deve ser aquele que for “mais fácil de controlar” e também “o melhor pagador”. Ora, tendo em conta esta conclusão, facilmente percebemos que os danos serão sempre imputados ao produtor, uma vez que o consumidor/utilizador muito dificilmente preencherá melhor que o primeiro estes critérios.

No entanto, esta solução tem como lógica apenas a eficácia e a facilidade de resolução da questão, mas não será, em todo e qualquer caso, a mais justa. Assim, a solução apresentada pela Profª Drª Maria Alexandra Aragão parece ser mais correcta e justa que a anteriormente descrita: Não devemos procurar quem é o poluidor num prisma abstracto. Devemos tentar perceber quem é que tem, efectivamente, o poder de controlo sobre essa mesma poluição, ou seja, se a actividade que desencadeia a poluição é a de produção ou a de consumo (seja no momento da utilização ou da eliminação dos bens). Dependendo da resposta a esta questão, podemos então determinar quem é o verdadeiro poluidor e, consequentemente, quem deve ser o pagador.

Situações mais simples são as das actividades às quais se aplica o PPP, sem necessidade de verificação no caso concreto. Existe uma listagem dessas actividades presente no anexo III do Decreto-Lei n.º147/2008, de 29 de Julho, aparentemente taxativa, que inclui, por exemplo: a exploração de instalações sujeitas a licença, o transporte de mercadorias perigosas ou poluentes, etc. No entanto, é permitido, aos Estados-Membros, que apliquem o mesmo a actividades não elencadas nesta lista, se forem susceptíveis de causar danos ambientais.

Existem ainda excepções, em que o poluidor não é obrigado a pagar, como por exemplo as situações em que este tenha adoptado todas as medidas de segurança adequadas e os danos resultem de uma acção (ou omissão) de um terceiro, que o poluidor não tinha forma de prever ou prevenir. Ou também as situações de danos decorrentes de actividades legais que tenham sido expressamente autorizadas e desenvolvidas com os cuidados e diligências necessárias, respeitando a dita autorização.


Conclusão

Após exposta a matéria referente a este tema, cabe fazer uma consideração final quanto à aplicabilidade real do PPP. A medida poderá ser eficiente em muitos casos mas considera-se que noutros tantos poderá "perder-se pelo caminho". Isto é, se estivermos a falar de grandes empresas, com uma capacidade de produção gigantesca e lucros acima da média, parece-nos que o PPP pode tornar-se uma "armadilha" pois acabará por funcionar, ao contrário do que é previsto, como uma "taxa a pagar para poder poluir". Não parece ser um grande obstáculo, para uma empresa de grandes dimensões e lucros ter de pagar (mais uma) taxa, se isso lhe trouxer mais lucros do que a opção de não poluir. Assim, parece-nos que seria mais vantajoso e eficaz optar-se por uma via de imposição de limites rígidos à produção de poluição, passando estes quer pela redução da própria produção, quer pela utilização de materiais/processos de produção menos poluentes. Caso contrário acabamos por cair no contrário de tudo o que foi dito neste texto, pois estaremos a "privilegiar" a reparação dos danos, face a possibilidade e impedir que eles ocorram.


NOTA: Este texto foi escrito ao abrigo do "antigo" Acordo Ortográfico.



Bibliografia:

Vasco Pereira da Silva – Verde Cor de Direito
Maria Alexandra Aragão – O Princípio do poluidor pagador como princípio nuclear da responsabilidade ambiental no direito europeu (Actas do Colóquio: A responsabilidade civil por dano ambiental.)
Maria Alexandra Aragão – O Princípio do poluidor pagador, pedra angular da política comunitária do ambiente
Teresa Margarida Fernandes – Princípio do Poluidor-Pagador (Seminário de Doutoramento)



Telma Silva, Nº 18431

domingo, 13 de abril de 2014

O Deferimento Tácito no RAIA



O Deferimento Tácito no RAIA



O RAIA ficou consagrado em Portugal através do Decreto-Lei n.º 186/90, de 6 de Junho e do Decreto Regulamentar n.º38/90, de 27 de Novembro, resultado da transposição da Directiva n.º 85/337/CEE, de 27 de Junho de 1985. 


Esta, impôs a realização de avaliações de impactes ambientais, em todo o espaço europeu, de projetos que fossem suscetíveis de produzir danos ambientais.


Como consequência das alterações feitas à Directiva n.º 85/337/CEE, de 27 de Junho de 1985, pela Directiva n.º 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março de 1997, houve necessidade de proceder a uma alteração global do regime, culminando com a criação do Decreto-Lei n.º 69/2000, de 3 de Maio.

Atualmente, o RAIA consta do Decreto-Lei n.º 151-B/2013, de 31 de outubro, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2011/92/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011 (codificação da Diretiva n.º 85/337/CEE, do Conselho de 27 de junho de 1985).

Relativamente ao deferimento ou indeferimento tácito, é necessário referir desde logo, que a questão só se coloca quanto esteja em causa atos administrativos.

Assim, o primeiro problema é saber se é possível aplicar o mesmo regime a pareceres.

Para responder a esta questão teríamos que discutir a natureza jurídica da DIA, discussão essa que extravasa o tema deste post. De qualquer das formas, muito sucintamente, refira-se que, a Doutrina tem admitido a possibilidade de tratar-se de um verdadeiro ato administrativo, tendo em conta uma perspetiva orgânica, competencial e material.

Nos termos do artigo 19.º/1, do RAIA, decorrido o prazo em que devia ter sido emitida a DIA, verifica-se deferimento tácito, considerando-se que a DIA é favorável quando nada foi comunicado à entidade licenciadora. Analisemos este regime:

Em primeiro lugar, importa referir que o artigo 19.º/2, do RAIA, consagra um sistema dualista, na medida em que prevê deferimento tácito, nos casos de licenciamento industrial ao fim de 80 dias, enquanto que nos restantes casos, prevê um prazo de 100 dias.

Da mesma forma, o nº 3, prevê a redução em 30 e 20 dias, respetivamente, caso haja intervenção de entidade acreditada para verificação da conformidade da EIA.

Mais: anteriormente, previa-se a suspensão do decurso do prazo, quando não estivessem em causa licenciamentos industriais, sempre que a comissão de avaliação solicitasse ao proponente aditamentos, informações complementares ou reformulação do resumo técnico para efeitos de conformidade do EIA e o proponente não o apresentasse. Dito de outra forma, sempre que o  procedimento estivesse parado por motivo imputável ao proponente.
Por incrível que pareça, esta possibilidade de suspensão do prazo não estava prevista para os casos em que se excluia as situações de licenciamento industrial.

Atualmente, o artigo 19.º/5 prevê a suspensão em qualquer caso.

Também, não está prevista a possibilidade de deferimento tácito nos casos em que um Estado membro potencialmente afectado declare a sua pretensão em participar no procedimento de AIA de projetos com impacte no seu território, nos termos do artigo 33.º/3.

Parece que nem o próprio legislador teve a certeza da admissibilidade de deferimento tácito, excluindo-no nas hipóteses em que haja possibilidade de intervenção de um outro Estado, quando podia, por exemplo, ter simplesmente aumentado o prazo.

Em segundo lugar, tendo em conta o regime dos artigos 108.º e 109.º, do CPA, a regra deveria ser a de indeferimento tácito em caso de silêncio, uma vez que essa é a regra geral consagrada no artigo 109.º.

A hipótese de deferimento tácito apenas está prevista para os casos referidos no elenco do artigo 108.º, e ainda para os casos, referidos pela Doutrina, de autorizações permissivas.

Estas correspondem aos casos em que o particular já tem um direito pré-existente, mas o seu exercício está condicionado à respetiva autorização. Mas ele já existe! Ora, não é isso que acontece nos casos do RAIA!

Por consequência de todas as limitações decorrentes do licenciamento e autorização dos projetos submetidos a AIA, não se pode considerar que há um direito prévio, existente antes de iniciado qualquer precedimento. Muito pelo contrário, revelando-se como uma restrição intensa de construção e de iniciativa económica dos particulares, o ato de licenciamento ou autorização insere-se na categoria de autorizações constitutivas ou autorizações-licença.

Como tal, não é apenas o exercício do direito que está condicionado, mas o próprio direito, em si mesmo. Desta forma, o proponente não goza de qualquer direito antes da autorização ou da DIA.

Dito isto, se fosse para ser consagrada uma regra pelo silêncio, a mesma teria que ser a do indeferimento tácito, nos termos do artigo 109.º, do CPA, não podendo, NUNCA, subsumir-se aos casos do artigo 108.º, do CPA.

Em terceiro lugar, constata-se uma violação dos Princípios da Prevenção, obrigando a que as possíveis agressões ambientais sejam asseguradas segundo um juízo de prognóse, exigindo-se que tenha havido um procedimento completo e eficaz; e do Princípio da Precaução, que determina uma inversão do ónus da prova em matéria de ambiente. 

Em caso de dúvida não se deve permitir atuações que possam causar danos ambientais - in dubio pro ambiente.

Em quarto lugar, a Jurisprudência Europeia considerou inadmissível deferimentos tácitos no âmbito de avaliação de impactes ambientais, no Acordão do Tribunal de Justiça das comunidades Euopeias (Terceira Secção) , de 14 de Junho de 2010 - Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Bélgica - Processo C-230/00.

Em causa estava a possibilidade de, indeferimento tácito caso a autoridade competente não se pronunciasse em primeira instância em relação a um pedido de autorização, e deferimento tácito em sede de  recurso.

A Comissão entendeu que o Reino da Bélgica com este regime violava a necessidade de condições “detalhadas quanto aos dados que devem constar de tais autorizações” e o dever de fixação pelas autoridades competentes de “um determinado número de elementos antes de deferir a autorização pedida”, tal como decorria das Directivas. Interpertando tais obrigações na exigência de um ato expresso.

O Tribunal deu razão à Comissão e condenou o Reino da Bélgica.

Sendo tal regime menos gravoso que o nosso, uma vez que apenas previa deferimento em caso de recurso, o que acontecia em pequeno número, facilmente se entende que no nosso ordenamento jurídico o mesmo é de todo, inadmissível.

Tendo em conta todas as razões enunciadas supra, entendemos que o legislador devia proceder, o mais rápido possível, a uma alteração legislativa e retirar a figura do deferimento tácito do RAIA.

A admitir a possibilidade de “pronúncia” tácita pela entidade competente, a mesma deveria ser a do indeferimento tácito, apesar de entendermos que, até essa hipótese mostra-se contrária com o próprio espírito do RAIA, uma vez que ao consagrar-se um procedimento especial, que visa à apreciação das consequências ecológicas de uma decisão, exigindo-se uma ponderação de interesses, não faz sentido atribuir valor jurídico ao silêncio.

A criação de tal regime exige um ato expresso, mas ainda assim a atribuir-se algum valor, o mesmo terá que ser, obrigatoriamente, o indeferimento tácito.

No entanto importa realçar que, a autorização, quer tácita, quer expressa, não significa que haja licenciamento do projecto. Há apenas, autorização. O pedido de licenciamento e a possivel concessão é sempre posterior.  




Bibliografia:

Dias, José Figueiredo, O Deferimento Tácito da DIA, in Revista do CEDOUA, 8, ano IV, 2001

Gomes, Carla Amado, O Procedimento de Licenciamento Ambiental Revistado, in Estudo de Direito do Ambiente e de Urbanismo, Lisboa, ICJP, 2010

Gomes, Carla Amado, Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Proteção do Ambiente 

Pina, Catarina Moreno, Os Regimes de Avaliação de Impacto Ambiental e Avaliação Ambiental Estratégica

Silva, Vasco Pereira, Verde Cor do Direito - Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002


Andreia Patrícia França nº20939