“Não
poríamos a mão no fogo pelas nossas opiniões, não
temos assim tanta certeza delas. Mas talvez nos deixemos queimar para podermos
ter de mudar as nossas opiniões."
Friedrich
Nietzsche
Neste
primeiro e atrasado Post iremos abordar a problemática do efeito conformador[1] dos
actos autorizativos ambientais, procurando apresentar de forma breve e
abstracta, isto é, abordando a questão atendendo apenas aos seus traços essenciais,
uma linha argumentativa, diferente da que tem sido apresentada na doutrina
nacional, capaz de justificar a prevalência dos instrumentos de regulação
administrativa das relações de vizinhança, quando existam, sobre os institutos
de direito privado, como por exemplo a acção negatória, artigo 1346.º de C.C.,
ou a responsabilidade civil, artigo 483.º C.C.
O
tema que nos propomos analisar poderá, derivado do seu objecto exíguo, ser
classificado, utilizando o contorcionismo verbal do legislador na redacção do
artigo 4.º nº1, alínea f) do ETAF, como de “especificamente específico”, no
entanto atendendo por um lado, às recentes propostas de reconstrução dogmática
das relações jurídicas administrativas multipolares[2], e
por outro, às não tão recentes construções doutrinárias relativas, a restrições
não expressamente autorizadas de direitos fundamentais[3] e aos
direitos subjectivos fundamentais[4], julgamos ser pertinente e relevante o seu
tratamento, uma vez que se abriu a possibilidade de uma
nova argumentação para o efeito conformador de certa forma diferente e
alternativa da apresentada pela doutrina Portuguesa nomeadamente pelos
Professores Gomes Canotilho[5] e
Filipa Calvão[6],
sendo que em nosso entender não se tratará de um mero exercício de “arejamento periódico”,
utilizando a expressão de Marcello Caetano, uma vez que, as diversas janelas
doutrinárias abertas provocaram uma corrente de ar que fez esvoaçar as ideias
exigindo-se uma nova arrumação. O conceito de visão em Paralaxe comumente
utilizada em astronomia, ilustra de forma bastante precisa a possibilidade de
uma nova linha de argumentação, a ideia é a de que um mesmo objecto visto de
duas posições diferentes cria a ilusão de se localizar em lugares distintos, ou
seja a sua posição no espaço quanto observado do lugar X é diferente de quando
observado do lugar Y. Assim sendo o objecto de análise do presente Post, em si,
não sofreu qualquer alteração desde que o seu tratamento foi levado a cabo
pelos Professores referidos, no entanto as alteração em matéria de entendimento
doutrinário de determinados aspectos dos direitos fundamentais bem como em
matéria de relações jurídicas multilaterais,
alteram o ponto de observação do objecto o que origina uma diferente visão do
problema.
É da praxe iniciar-se a abordagem
deste tema recorrendo-se ao instrumento retórico da questão hipotética, não
seremos excepção, no entanto esta será mais longa e detalhada do que o habitual
de forma a evitar o elevado número de sub-hipóteses, que nos textos
doutrinários, geram aquilo que se pode denominar eufemisticamente de floresta
de argumentação dilatória, que mais das vezes serve apenas ou para fugir ao
cerne da questão, ou então para esconder uma débil resolução do problema, a
qual passa invariavelmente por remeter para o legislador a resolução do mesmo,
acabando por nunca ser dada uma resposta cabal para as situações em que o
legislador nada diz.
Tendo António sido
autorizado, por um acto administrativo que não padece de nenhuma invalidade e
ainda menos de um qualquer problema de eficácia, diga-se que estamos perante um
Adónis dos actos administrativos, a emitir um valor X de dióxido de carbono, nunca
tendo António ultrapassando esse valor X, pode Bento, seu vizinho, não se
encontrando legalmente previsto o efeito preclusivo da autorização, intentar
contra ele uma acção negatória ou de responsabilidade civil fundada no seu
direito fundamental ao ambiente, lesado com a emissões de valor X?
A resposta da grande maioria da
doutrina à questão apresentada seria em sentido afirmativo, incluindo, como já supra indiciado, para aqueles autores
que à primeira vista aparentam defender a existência de um efeito legalizador,
ou seja nesta situação a existência de um acto autorizativo não afastaria a
possibilidade de Bento lançar mão dos mecanismos de tutela jurídico-privados.
No entanto julgamos que a resposta
adequada à questão deverá ser em sentido negativo, o que nos obriga a construir
uma linha argumentativa capaz de sustentar que em caso de existência de um acto
autorizativo, fica afastada a possibilidade de recorrer a mecanismos de tutela
jurídico privados, mesmo nos casos em que o legislador não explicitou esse
afastamento.
Em primeiro lugar a discussão sobre
o efeito conformador do acto nas relações de vizinhança, deve ser tida
desconsiderando o acto, sob pena de se cometer o mesmo erro que o mal-afortunado
tolo do provérbio chinês, que olha para o dedo quando lhe apontam a lua, a
questão deverá ser colocada ao nível do plano legislativo, uma vez que os
efeitos a produzir pelo acto se encontram pré-determinados legalmente, sendo
que até mesmo a sua dimensão criativa será resultado de uma margem de livre
decisão conferida pela norma[7], portanto
mais relevante do que atendermos ao acto administrativo é ter em conta o
programa normativo[8],
isto é a norma que prevê a necessidade de autorização, citando Lenine, um
correcto entendimento da problemática em análise só é possível dando "Um passo atrás para dar
dois à frente".
Ao
prever a necessidade de um acto autorizativo ambiental para o exercício de uma
determinada actividade o legislador, estabelece uma restrição, através de uma
proibição sobre reserva de permissão[9]
ao direito fundamental de propriedade, a qual se deverá fundamentar, sob pena
de se estar a estabelecer um restrição arbitrária, num dever de protecção
preventiva do direito fundamental ao ambiente, ou seja o legislador antecipa
normativamente a solução[10]
para a colisão de 1º grau entre o direito fundamental de propriedade e o
direito fundamental ao ambiente, estabelecendo a prevalência do primeiro em
relação ao segundo. Nesta primeira fase o legislador estabelece uma solução rígida para a colisão.
No entanto a restrição de 1º grau
não é absoluta, só o seria se o legislador proibisse totalmente aquela
actividade, o que origina um 2º grau de resolução da mesma colisão de direitos
fundamentais, o qual ocorre quando o particular requere uma autorização à
administração.
Neste segundo momento o legislador flexibiliza a
solução consagrada no 1º grau, prevendo um conjunto de situações, de forma
expressa ou atribuindo uma certa margem de discricionariedade à administração,
em que a solução de 1º grau deverá ser afastada, ou seja, em que a resolução da
colisão deverá ser no sentido de dar prevalência ao direito fundamental de
propriedade sobre o direito fundamental ao ambiente, que havia prevalecido no
1º grau, assim sendo de forma indirecta e implícita o legislador estabelece uma
restrição do direito fundamental ao ambiente proporcional à medida da
prevalência do direito fundamental de propriedade, a qual é diametralmente
inversa à restrição expressamente consagrada pelo legislador no 1º grau.
Assim sendo e sintetizando o exposto
em nosso entender sempre que o legislador estabelece a necessidade de uma acto
autorizativo ambiental, tal significará sempre a consagração de duas
restrições, uma de 1º nível, rígida, e uma de 2º nível, posterior à participação
da Administração em virtude de remissão legal que é feita para esta, que poderá
ser no sentido de confirmar a restrição de 1º nível ou então de concretizar uma
restrição ao direito fundamental primariamente protegido com a criação do
obstáculo jurídico autorização.
Adaptando ao caso hipotético que construímos,
devemos concluir que o acto autorizativo favorável a António, concretizou uma
restrição no concreto direito fundamental ao ambiente subjectivamente
considerado de Bento e de todos quanto se vejam afectados pelo acto
administrativo.
Assim sendo, mais importante do que
se falar do efeito legalizador ou do efeito de preclusão, pois estes serão mera
consequência, é ter-se em conta o Efeito
concretizador da restrição de 2º nível de um direito fundamental abstractamente
e implicitamente prevista na norma que exige a autorização, pois em nosso
entender é este efeito que justificará o efeito conformador das relações de
vizinhança.
Em complementaridade às ideias
expostas há que acrescentar que a nossa linha argumentativa só se completa com
a ideia de que a constituição estabelece uma ordem unitária de direitos
fundamentais[11],
logo, e citamos propositadamente Mafalda Carmona, uma vez que a mesma entende
que o acto administrativo é incapaz de conformar relações de vizinhança, “a
aplicação de uma norma de direito privado num sistema unitário de direitos
fundamentais implica que não se está a aplicar apenas essa norma mas todo o
direito, neste se incluindo a Constituição”[12],
daqui decorre, que levada às ultimas consequências a tese da ordem unitária
implica que tal como os direitos subjectivos[13],
também as restrições aos mesmos deixem de ser apelidadas, ultrapassando
livremente as fronteiras estabelecidas pelos ramos de direito, o
que significará que uma restrição do direito fundamental ao ambiente, concretizada
por acto administrativo, tem como consequência a sua compressão também no âmbito do direito privado.
Assim sendo em nosso entender a
situação de facto do particular destinatário da restrição concretizada pelo
acto autorizativo não é passível de subsunção nas normas dos artigos 483.º C.C.
e 1346 C.C., uma vez que tendo o direito fundamental ao ambiente sido
restringido, este perde a sua força jurídica perante o autorizado na medida da
prevalência do direito fundamental de propriedade daquele.
Nesta construção o que ocorre é a
inexistência de um direito que garanta a protecção em relação à lesão uma vez
que o acto administrativo autorizativo concretizou uma restrição ao direito.
Com
este post pretendemos tão só contribuir para uma melhor justificação do efeito
conformador do acto administrativo, não tendo abordado o segundo problema
habitualmente considerado que é o da responsabilidade pelo dano, mesmo que por
facto lícito, que no fundo é a matéria mais dada a inovações e impulsos
criativos, por entendermos que esta é uma temática em que é necessário ter como
lema a subversão da 11.ª tese de Marx sobre Feuerbach[14],
ou seja é necessário interpretar antes de modificar, uma vez que debilidades ao
primeiro nível, enfermam qualquer solução a que se chegue no segundo.
Em suma e dando resposta à pergunta
que dá título a este pequeno texto, o Direito Administrativo “põe”,
concretizando uma solução normativa abstractamente prevista para uma
determinada colisão de direitos fundamentais, e o Direito Privado, em virtude
de um entendimento unitário e não adjectivado de direito subjectivo ao ambiente,
não se “opõem” à prévia ponderação levada acabo pelo legislador
democraticamente legitimado.
Julgamos
ser esta a melhor forma de solucionar o problema evitando-se desde logo colocar
a tónica numa pretensa antinomia normativa resultante de uma valoração
diferenciada da ilicitude pelos diferentes ramos do direito,
análise que funciona numa lógica que torna obrigatório determinar a prevalência
de um dos ramos relativamente aos demais, o que acaba por gerar no interprete
uma angustia da decisão que o paralisa. Quando colocados perante uma escolha
entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde, existe sempre uma terceira hipótese que passa por
escolher Robert Louis Stevenson, no
fundo foi o que procuramos fazer ao propor uma resolução do problema baseada
nos direitos fundamentais, isto é remetendo para um plano superior e consequentemente
conformador da aplicação de todas as normas da ordem jurídica independentemente
do seu ramo de origem.
José
Miguel de Freitas Toste, nº 20876
Bibliografia:
CALVÃO, Filipa Urbano - Direito do ambiente e tutela
processual das relações de vizinhança. In VAZ, Manuel Afonso; LOPES, AZEREDO
J.A. (Coord.) - Juris et de jure - nos vinte anos da Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa. Porto: Universidade Católica Portuguesa,
1998. ISBN 972-8069-21-9. p.573-602.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade
por Danos Ambientais, in BFDUC,
vol. LXIX, 1993.
CARMONA, Mafada - O acto administrativo conformador
de relações de vizinhança : Almedina, 2011.
GOMES, Carla Amado -
Introdução
ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2014.
MARQUES, Francisco Paes - As Relações Jurídicas
Administrativas Multipolares, (contributo para a sua compreensão substantiva),
Almedina, 2011.
NOVAIS, Jorge Reis - As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
constituição, Coimbra, 2010.
SILVA, Vasco Pereira da Silva - Em Busca do Acto
Administrativo Perdido, Almedina, 2003.
SILVA, Vasco Pereira da Silva - Verdes
são também os direitos do Homem (Publicismo, associativismo e privatismo no
Direito do Ambiente), Portugal-Brasil
Ano 2000, Coimbra, 1999, pág. 127 e ss.
[1] Alguma doutrina fala em efeito
legalizador. Sobre as questões de terminologia relacionadas com o tema ver,
CARMONA (2011) p.28
[2] MARQUES (2011) p.217 e ss., em
especial as teses, p.435 e ss. e (2012) p.55
[3] NOVAIS (2010) p.569 e ss.
[4] CARMONA (2011) p.211 e SILVA
(1999) p.135 e ss.
[5] CANOTILHO (1993)
[6] CALVÃO (1998)
[7] MARQUES (2011) p.82 e ss.
[8] MARQUES (2011) p.287 e ss.
[9] GOMES (2014) p. 114 e ss.
[10] NOVAIS (2010) p.842 e ss.
[11] CARMONA
(2011) p.210
[12] CARMONA (2011) p.210
[13] SILVA (1995), p.214