Princípio da Prevenção versus Princípio da Precaução no
ordenamento jurídico nacional: uma reflexão critica
1. Introdução
No presente estudo iremos
abordar a temática de dois princípios estruturantes do Direito do Ambiente: O
princípio da prevenção e o princípio da precaução. Desde logo, começar por uma
breve explicitação de ambos e o seu enquadramento na ordem jurídica nacional,
em especial, o problema da existência ou não de um princípio da precaução em
Direito do Ambiente. Depois, no caso da admissibilidade deste último,
estabelecer a diferença de aplicação entre os dois, ou seja, onde se encontra a
linha que os separa.
2. Definição dos Princípios
Começando pelo princípio
da prevenção, podemos constatar que este tem como premissa máxima a prevenção
de um dano antes da sua ocorrência. Tem uma densificação constitucional no
artigo 66º/2,a) da Constituição da República Portuguesa bem como no próprio
artigo 3º, alínea a) da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87 de 7 de Abril) que
refere: “as atuações com efeitos
imediatos ou a prazo no ambiente devem ser consideradas de forma antecipativa,
reduzindo ou eliminando as causas, prioritariamente à correção dos efeitos
dessas ações ou atividades suscetíveis de alterarem a qualidade do ambiente,
sendo o poluidor obrigado a corrigir ou recuperar o ambiente, suportando os
encargos daí resultantes, não lhe sendo permitido continuar a ação poluente”.
Tendo em conta um campo tão específico como o é o Ambiente, torna-se imperiosa
a antecipação dos efeitos lesivos levados a cabo pelo homem, até porque os bens
ambientais têm na maior parte das vezes a natureza de bens esgotáveis e os que
não o são, podem ter efeitos lesivos na vida dos cidadãos de qualquer forma
(pense-se no exemplo da água, por muito difícil que seja a determinação acerca
de se é esgotável ou não, esta também deve merecer proteção pela influencia que
pode ter nas nossas vidas). Na mesma linha, depois de a poluição ou o dano
ocorrerem, tipicamente são impossíveis de reposição tal e qual como se
encontrava a situação descrita (quando o é, é especialmente onerosa). Aliado a
isto, a doutrina tem vindo a densificar o princípio, associando-lhe a atuação
perante eventos prováveis, à luz de regras de experiência e de ciência, ou
seja, perante perigos, ao invés da
precaução que já estaria destinada a riscos,
eventos possíveis mas sem certezas científicas (a discussão acerca da
possibilidade da existência deste último por contraposição à prevenção ficará
para momento posterior).
Já o princípio da
precaução, como demos a entender, assenta na resolução dos casos de dúvida, ou
seja, cria como que um benefício da dúvida para o Ambiente: quando, por falta
de certeza cientifica, não se consiga saber se uma dada atividade lesa o
Ambiente, cabe aquele que quer adquirir uma vantagem provar que não existe
nenhum nexo causal entre a sua conduta e a lesão do meio ambiente. Apesar de já
ter algumas referências a nível de ordenamentos nacionais, este principio
apenas veio a obter uma defesa expressa aquando da Declaração do Rio, em 1992,
bem como em diversos outros diplomas de Direito Internacional, sendo de referir
a menção no Tratado de Maastricht. Ao nível do Direito Europeu, o princípio tem
vindo a obter uma aplicação expressa através de diversas formas, tal como a Dra. Alexandra Aragão indica: “Um número
total de 301 documentos oficiais europeus em vigor, com referências diretas à
precaução, fazem dele um princípio fundamental, não apenas de Direito Ambiental
mas de Direito Europeu, em geral. Em 2002 o Tribunal Europeu de Primeira
Instância afirmou-o expressamente no caso Artegodan”[1].
A Como já tivemos ocasião de escrever noutro local, a precaução é uma ideia emergente
do Direito do Mar, com uma filiação direta na consternação generalizada gerada
pelos graves problemas de poluição causados por acidentes com petroleiros. A Professora Carla Amado Gomes, por sua
vez, divide o princípio em três “versões”: uma “fraca”, correspondente a uma
ausência de certeza sobre os efeitos de determinado comportamento para a saúde
e ambiente, devendo portanto ser proibido, uma versão “forte”, em que pelo
facto de não existir uma certeza absoluta acerca de determinados efeitos de uma
conduta, a mesma deva ser temperada através da adoção de medidas minimizadoras
ou dissuasoras, e, por fim, uma versão “média”, que procura temperar a versão
“forte” com uma análise custo-benefício das medidas, correspondendo a uma
ponderação para que o 18º/2 da Constituição aponta[2].
Não sendo necessária esta densificação com o princípio da prevenção, principio
que não é discutido enquanto elemento protetor do ambiente, o princípio da
precaução encontra-se previsto em três legislações nacionais:
- Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro),
artigo 3º, n.º1 e): “Princípio da precaução, nos termos do qual as medidas
destinadas a evitar o impacte negativo de uma ação sobre o ambiente devem ser
adotadas, mesmo na ausência de certeza científica da existência de uma relação
causa-efeito entre eles”.
- Lei de Bases de
Proteção Civil (Lei
n.º 27/2006 de 3 de Julho), artigo 5º c): “O princípio da precaução, de acordo
com o qual devem ser adotadas as medidas de diminuição do risco de acidente
grave ou catástrofe inerente a cada atividade, associando a presunção de imputação
de eventuais danos à mera violação daquele dever de cuidado”.
- Lei da Conservação
da Natureza e da Biodiversidade (Decreto-Lei n.º 142/2008 de 24 de Julho), artigo 4º e):
“Princípio da precaução, nos termos do qual as medidas destinadas a evitar o
impacte negativo de uma ação sobre a conservação da natureza e a biodiversidade
devem ser adotadas mesmo na ausência de certeza científica da existência de uma
relação causa-efeito entre eles“.
3. Necessidade da precaução?
Os princípios que
acabamos de referir estão envolvidos nalguma polémica, não a nível europeu,
mas, maioritariamente no plano nacional. A Dra.
Alexandra Aragão é uma das defensoras acérrimas do princípio da precaução,
chamando-lhe de “princípio racional e cientificamente fundado de
responsabilidade pelo futuro”[3]
além de ser um principio que visa proteger a parte mais frágil
responsabilizando quem tem o poder e o dever de controlar os riscos. A conceção
desta autora parte da base de que os danos possíveis no meio ambiente são
demasiado graves para não olharmos para eles desta perspetiva, ou seja, não
podemos esperar por provas irrefutáveis e pelo consenso científico generalizado
para atuar perante um perigo ambiental, já para não falar no seu carácter de
danos globais e irreversíveis, tendo em conta a globalização do mercado dos
produtos e dos serviços, a aceleração do consumo, que afetam, não apenas, mas
em grande parte, gerações futuras que também “merecem” ser protegidas. A irreversibilidade
é um aspeto fulcral da caracterização dos riscos, que comporta, para as
gerações futuras, perda de oportunidades de realização. A defesa de certas
irreversibilidades justifica-se, portanto, pelo interesse na manutenção das
escolhas potenciais para o presente e para o futuro. A mesma autora refere
ainda uma “insustentabilidade social dos riscos”[4].
Com isto, podemos então concluir que para que haja uma efetiva aplicação do
princípio, a gravidade dos riscos deve ser levada em consideração tendo em
conta estes critérios referidos, gravidade esta que, em caso de ser elevada,
fica completa com o “grau” final da incerteza que o separa da prevenção,
convocando a aplicação da precaução. Admitindo que seguimos esta orientação,
quais as medidas que podem ser aplicadas? Podem ser medidas de todo o tipo,
positivo ou negativo, mais reativas ou menos reativas, como por exemplo o
estabelecimento de proibições liminares ou a mera informação da população
potencialmente afetada.
A Professora Carla Amada Gomes constitui uma voz algo cética quanto à
aplicação do principio da precaução no ordenamento jurídico nacional. Desde
logo, denota que nunca o poderíamos entender como uma regra, mas sim apenas
como uma direção, devido à sua grande indefinição, estamos no domínio da
possibilidade e não no da probabilidade, como é o caso da prevenção[5].
Interpretando restritivamente este princípio, cairíamos numa atitude irrealista
de proibir ou sancionar todas as atuações que, com um grau de possibilidade
mínimo, pudessem causar um dano ambiental. Assim, a precaução não seria
operativa. Podemos dizer que a precaução tem um sentido preventivo, apenas
muito mais amplo do que aquele que é tradicionalmente atribuído à prevenção.
Não é discutido se a precaução pode ou não ser uma boa ferramenta de defesa do
Ambiente, porque a resposta é clara e positiva. Mas, a consagração expressa de
um in dúbio pro ambiente levaria a
obter do Direito ao Ambiente uma posição claramente prevalecente sobre os
demais direitos e deveres, o que não pode ser admitido ao contrário de uma
certa ponderação, essa já perfeitamente admissível. Daí que a Professora faça
uma adequada contraposição entre este princípio e os restantes valores
protegidos pelo nosso ordenamento constitucional. A prevenção é claramente protegida,
como podemos verificar pela leitura do artigo 66º, 2, a) da Constituição já
para não falar da sua consagração como tarefa fundamental do Estado no 9º,e),
só que não estaremos a ir longe de mais ao admitir que esta também quis prever
uma figura constitucional de precaução? Não retirando os bons efeitos que uma
atitude precaucionaria pode ter, esta deve sempre ser entendida como referência
numa ponderação geral de bens por forma da leitura sistemática da Lei
Fundamental e do imperativo de proporcionalidade. Continuando, um outro
problema é o da determinação do grau de incerteza que faz desencadear a
precaução. Concretizando, a partir de que momento é que se justifica uma
restrição ou uma obrigação de atuação? É, sobretudo, a partir desta dificuldade
que a Professora qualifica a precaução como uma diretiva politica em vez de um
“padrão de comportamento obrigatório”, assente em aspetos conjunturais que
tornam a normatividade do conceito senão impossível, pelo menos muito difícil[6].
Portanto, não é que a importância da precaução seja negada, a sua densificação
é que torna a aplicação de tal princípio complicada, o que nos leva à nossa
conclusão.
Já o Professor Vasco
Pereira da Silva delimita o princípio da prevenção em termos restritos, de modo
a evitar perigos imediatos e concretos, e em termos amplos, ao afastar
eventuais riscos futuros, mesmo que ainda não inteiramente determináveis[7].
Continuando já na análise de uma admissibilidade do princípio da precaução,
prefere formular um princípio da prevenção em termos amplos: desde logo, porque
não se verificam vantagens numa distinção vocabular entre prevenção e
precaução, que até pode levar a uma diminuição da clareza que é necessária em
Direito do Ambiente. Depois, a autonomização desde último princípio revela-se,
pelo menos, difícil no plano prático, onde qualquer nova realidade pode ser à
partida considerada nociva para o meio ambiente. Por fim, a criação de um in dúbio pro natura revelar-se-ia
irracional, ou seja, uma inversão do ónus da prova de que o meio ambiente não
vai ser afectado por uma determinada conduta. Isto porque iria ser “um factor
inibidor de qualquer fenómeno de mudança, susceptível de se virar mesmo contra
a tutela ambiental.
4. Conclusões
A importância de um
princípio da precaução nunca foi o objeto da nossa discussão. Foi-o, sim,
enquanto forma autónoma de proteção de interesses ambientais, além da
prevenção. E aqui, torna-se muito difícil defender a sua consagração expressa
no ordenamento jurídico nacional pelo menos no que toca a normas que invertam
expressamente o referido ónus da prova para aquele que, supostamente, terá um
comportamento suscetível de causar danos ambientais. Repare-se que as situações
em que dada conduta provavelmente terá efeitos repressivos já estão devidamente
acauteladas com a prevenção. Será, no entanto, necessária uma precaução
explícita? Neste ponto, achamos que não. A incerteza da restrição ao direito
fundamental ao ambiente do artigo 66º da Constituição não deverá ser sobreposta
à certeza da restrição sobre a iniciativa económica privada do artigo 62º.
Claro que haverá casos específicos que merecem uma atenção especial: por
exemplo, no Direito Marítimo, precisamente de onde a precaução extraí as suas
raízes, é que a precaução obteve uma primeira dimensão ou formulação
concretizadora através da Declaração resultante da Segunda Conferência
Ministerial do Mar do Norte, sobre poluição marítima. Neste ponto, estávamos
perante uma situação de tal forma essencial, os graves problemas de poluição
causados por acidentes com petroleiros, que se justificava uma precaução nos
termos em que a colocamos, o que até levou a uma vinculação expressa dos
signatários da Declaração de Londres resultante da conferência referida em 1987
a uma atitude de precaução. Conseguir consagrar uma solução geral ou até
especifica para o problema é que se pode afigurar de mais problemático, em
virtude das considerações proferidas anteriormente adaptadas do pensamento da
Professora Carla Amada Gomes com a
qual concordamos.
5. Bibliografia
- ARAGÃO, Alexandra, Princípio da Precaução: manual de instruções,
in Revista do CEDOUA, ano 11, nº2 (2008);
- GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente,
2ªEdição, Lisboa, AAFDL, 2014;
- ARAGÃO, Alexandra, Princípio da Precaução: manual de instruções,
in Revista do CEDOUA, ano 11, nº2 (2008);
- ARAGÃO, Alexandra, Aplicação Nacional do Princípio da Precaução,
in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa
e Fiscal Portuguesa), 2013;
- GOMES, Carla Amado, A Prevenção à Prova no Direito do Ambiente.
Em especial, os Actos Autorizativos Ambientais, Coimbra, Coimbra Editora,
2000;
- GOMES, Carla Amado, Risco e Modificação do Ato Autorizativo
Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, Coimbra, Coimbra Editora,
2007;
- PEREIRA DA SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 65 e ss.
[1] ARAGÃO,
Alexandra, Princípio da Precaução: manual
de instruções, in Revista do CEDOUA, ano 11, nº2 (2008), pp. 9 e ss.
[2] GOMES,
Carla Amado, Introdução ao Direito do
Ambiente, 2ªEdição, Lisboa, AAFDL, 2014, pp. 89-92
[3] ARAGÃO,
Alexandra, Princípio da Precaução: manual
de instruções, in Revista do CEDOUA, ano 11, nº2 (2008), pp. 15 e ss.
[4] ARAGÃO,
Alexandra, Aplicação Nacional do Princípio
da Precaução, in Colóquios 2011-2012 (Associação dos Magistrados da
Jurisdição Administrativa e Fiscal Portuguesa), 2013, pp. 159-185
[5] GOMES,
Carla Amado, A Prevenção à Prova no
Direito do Ambiente. Em especial, os Actos Autorizativos Ambientais,
Coimbra, Coimbra Editora, 2000.
[6] GOMES,
Carla Amado, Risco e Modificação do Ato
Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, pp. 180 e ss.
[7] PEREIRA
DA SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito,
Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 65 e ss.
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