terça-feira, 22 de abril de 2014

O Direito Administrativo põe, o Direito Privado dispõe?



“Não poríamos a mão no fogo pelas nossas opiniões, não temos assim tanta certeza delas. Mas talvez nos deixemos queimar para podermos ter de mudar as nossas opiniões."

Friedrich Nietzsche

Neste primeiro e atrasado Post iremos abordar a problemática do efeito conformador[1] dos actos autorizativos ambientais, procurando apresentar de forma breve e abstracta, isto é, abordando a questão atendendo apenas aos seus traços essenciais, uma linha argumentativa, diferente da que tem sido apresentada na doutrina nacional, capaz de justificar a prevalência dos instrumentos de regulação administrativa das relações de vizinhança, quando existam, sobre os institutos de direito privado, como por exemplo a acção negatória, artigo 1346.º de C.C., ou a responsabilidade civil, artigo 483.º C.C.  

O tema que nos propomos analisar poderá, derivado do seu objecto exíguo, ser classificado, utilizando o contorcionismo verbal do legislador na redacção do artigo 4.º nº1, alínea f) do ETAF, como de “especificamente específico”, no entanto atendendo por um lado, às recentes propostas de reconstrução dogmática das relações jurídicas administrativas multipolares[2], e por outro, às não tão recentes construções doutrinárias relativas, a restrições não expressamente autorizadas de direitos fundamentais[3] e aos direitos subjectivos fundamentais[4], julgamos ser pertinente e relevante o seu tratamento, uma vez que se abriu a possibilidade de uma nova argumentação para o efeito conformador de certa forma diferente e alternativa da apresentada pela doutrina Portuguesa nomeadamente pelos Professores Gomes Canotilho[5] e Filipa Calvão[6], sendo que em nosso entender não se tratará de um mero exercício de “arejamento periódico”, utilizando a expressão de Marcello Caetano, uma vez que, as diversas janelas doutrinárias abertas provocaram uma corrente de ar que fez esvoaçar as ideias exigindo-se uma nova arrumação. O conceito de visão em Paralaxe comumente utilizada em astronomia, ilustra de forma bastante precisa a possibilidade de uma nova linha de argumentação, a ideia é a de que um mesmo objecto visto de duas posições diferentes cria a ilusão de se localizar em lugares distintos, ou seja a sua posição no espaço quanto observado do lugar X é diferente de quando observado do lugar Y. Assim sendo o objecto de análise do presente Post, em si, não sofreu qualquer alteração desde que o seu tratamento foi levado a cabo pelos Professores referidos, no entanto as alteração em matéria de entendimento doutrinário de determinados aspectos dos direitos fundamentais bem como em matéria de relações jurídicas multilaterais, alteram o ponto de observação do objecto o que origina uma diferente visão do problema.

            É da praxe iniciar-se a abordagem deste tema recorrendo-se ao instrumento retórico da questão hipotética, não seremos excepção, no entanto esta será mais longa e detalhada do que o habitual de forma a evitar o elevado número de sub-hipóteses, que nos textos doutrinários, geram aquilo que se pode denominar eufemisticamente de floresta de argumentação dilatória, que mais das vezes serve apenas ou para fugir ao cerne da questão, ou então para esconder uma débil resolução do problema, a qual passa invariavelmente por remeter para o legislador a resolução do mesmo, acabando por nunca ser dada uma resposta cabal para as situações em que o legislador nada diz.

Tendo António sido autorizado, por um acto administrativo que não padece de nenhuma invalidade e ainda menos de um qualquer problema de eficácia, diga-se que estamos perante um Adónis dos actos administrativos, a emitir um valor X de dióxido de carbono, nunca tendo António ultrapassando esse valor X, pode Bento, seu vizinho, não se encontrando legalmente previsto o efeito preclusivo da autorização, intentar contra ele uma acção negatória ou de responsabilidade civil fundada no seu direito fundamental ao ambiente, lesado com a emissões de valor X?

            A resposta da grande maioria da doutrina à questão apresentada seria em sentido afirmativo, incluindo, como já supra indiciado, para aqueles autores que à primeira vista aparentam defender a existência de um efeito legalizador, ou seja nesta situação a existência de um acto autorizativo não afastaria a possibilidade de Bento lançar mão dos mecanismos de tutela jurídico-privados.

            No entanto julgamos que a resposta adequada à questão deverá ser em sentido negativo, o que nos obriga a construir uma linha argumentativa capaz de sustentar que em caso de existência de um acto autorizativo, fica afastada a possibilidade de recorrer a mecanismos de tutela jurídico privados, mesmo nos casos em que o legislador não explicitou esse afastamento.

            Em primeiro lugar a discussão sobre o efeito conformador do acto nas relações de vizinhança, deve ser tida desconsiderando o acto, sob pena de se cometer o mesmo erro que o mal-afortunado tolo do provérbio chinês, que olha para o dedo quando lhe apontam a lua, a questão deverá ser colocada ao nível do plano legislativo, uma vez que os efeitos a produzir pelo acto se encontram pré-determinados legalmente, sendo que até mesmo a sua dimensão criativa será resultado de uma margem de livre decisão conferida pela norma[7], portanto mais relevante do que atendermos ao acto administrativo é ter em conta o programa normativo[8], isto é a norma que prevê a necessidade de autorização, citando Lenine, um correcto entendimento da problemática em análise só é possível dando "Um passo atrás para dar dois à frente".


            Centrando a questão no plano legislativo, analisaremos agora, o problema que denominamos de duplo grau de restrição, neste ponto do Post, utilizando a metáfora, náutica, perderemos por algum tempo a costa doutrinária, e procuraremos navegar por águas desconhecidas com recurso essencialmente a rudimentares instrumentos lógico-formais e a uma terminologia criativa. 

            Ao prever a necessidade de um acto autorizativo ambiental para o exercício de uma determinada actividade o legislador, estabelece uma restrição, através de uma proibição sobre reserva de permissão[9] ao direito fundamental de propriedade, a qual se deverá fundamentar, sob pena de se estar a estabelecer um restrição arbitrária, num dever de protecção preventiva do direito fundamental ao ambiente, ou seja o legislador antecipa normativamente a solução[10] para a colisão de 1º grau entre o direito fundamental de propriedade e o direito fundamental ao ambiente, estabelecendo a prevalência do primeiro em relação ao segundo. Nesta primeira fase o legislador estabelece uma solução rígida para a colisão.

            No entanto a restrição de 1º grau não é absoluta, só o seria se o legislador proibisse totalmente aquela actividade, o que origina um 2º grau de resolução da mesma colisão de direitos fundamentais, o qual ocorre quando o particular requere uma autorização à administração.

Neste segundo momento o legislador flexibiliza a solução consagrada no 1º grau, prevendo um conjunto de situações, de forma expressa ou atribuindo uma certa margem de discricionariedade à administração, em que a solução de 1º grau deverá ser afastada, ou seja, em que a resolução da colisão deverá ser no sentido de dar prevalência ao direito fundamental de propriedade sobre o direito fundamental ao ambiente, que havia prevalecido no 1º grau, assim sendo de forma indirecta e implícita o legislador estabelece uma restrição do direito fundamental ao ambiente proporcional à medida da prevalência do direito fundamental de propriedade, a qual é diametralmente inversa à restrição expressamente consagrada pelo legislador no 1º grau.

            Assim sendo e sintetizando o exposto em nosso entender sempre que o legislador estabelece a necessidade de uma acto autorizativo ambiental, tal significará sempre a consagração de duas restrições, uma de 1º nível, rígida, e uma de 2º nível, posterior à participação da Administração em virtude de remissão legal que é feita para esta, que poderá ser no sentido de confirmar a restrição de 1º nível ou então de concretizar uma restrição ao direito fundamental primariamente protegido com a criação do obstáculo jurídico autorização.

             Adaptando ao caso hipotético que construímos, devemos concluir que o acto autorizativo favorável a António, concretizou uma restrição no concreto direito fundamental ao ambiente subjectivamente considerado de Bento e de todos quanto se vejam afectados pelo acto administrativo.

            Assim sendo, mais importante do que se falar do efeito legalizador ou do efeito de preclusão, pois estes serão mera consequência, é ter-se em conta o Efeito concretizador da restrição de 2º nível de um direito fundamental abstractamente e implicitamente prevista na norma que exige a autorização, pois em nosso entender é este efeito que justificará o efeito conformador das relações de vizinhança.

            Em complementaridade às ideias expostas há que acrescentar que a nossa linha argumentativa só se completa com a ideia de que a constituição estabelece uma ordem unitária de direitos fundamentais[11], logo, e citamos propositadamente Mafalda Carmona, uma vez que a mesma entende que o acto administrativo é incapaz de conformar relações de vizinhança, “a aplicação de uma norma de direito privado num sistema unitário de direitos fundamentais implica que não se está a aplicar apenas essa norma mas todo o direito, neste se incluindo a Constituição”[12], daqui decorre, que levada às ultimas consequências a tese da ordem unitária implica que tal como os direitos subjectivos[13], também as restrições aos mesmos deixem de ser apelidadas, ultrapassando livremente as fronteiras estabelecidas pelos ramos de direito, o que significará que uma restrição do direito fundamental ao ambiente, concretizada por acto administrativo, tem como consequência a sua compressão também no âmbito do direito privado.  

            Assim sendo em nosso entender a situação de facto do particular destinatário da restrição concretizada pelo acto autorizativo não é passível de subsunção nas normas dos artigos 483.º C.C. e 1346 C.C., uma vez que tendo o direito fundamental ao ambiente sido restringido, este perde a sua força jurídica perante o autorizado na medida da prevalência do direito fundamental de propriedade daquele. 

            Nesta construção o que ocorre é a inexistência de um direito que garanta a protecção em relação à lesão uma vez que o acto administrativo autorizativo concretizou uma restrição ao direito.

Com este post pretendemos tão só contribuir para uma melhor justificação do efeito conformador do acto administrativo, não tendo abordado o segundo problema habitualmente considerado que é o da responsabilidade pelo dano, mesmo que por facto lícito, que no fundo é a matéria mais dada a inovações e impulsos criativos, por entendermos que esta é uma temática em que é necessário ter como lema a subversão da 11.ª tese de Marx sobre Feuerbach[14], ou seja é necessário interpretar antes de modificar, uma vez que debilidades ao primeiro nível, enfermam qualquer solução a que se chegue no segundo.

            Em suma e dando resposta à pergunta que dá título a este pequeno texto, o Direito Administrativo “põe”, concretizando uma solução normativa abstractamente prevista para uma determinada colisão de direitos fundamentais, e o Direito Privado, em virtude de um entendimento unitário e não adjectivado de direito subjectivo ao ambiente, não se “opõem” à prévia ponderação levada acabo pelo legislador democraticamente legitimado.

Julgamos ser esta a melhor forma de solucionar o problema evitando-se desde logo colocar a tónica numa pretensa antinomia normativa resultante de uma valoração diferenciada da ilicitude pelos diferentes ramos do direito, análise que funciona numa lógica que torna obrigatório determinar a prevalência de um dos ramos relativamente aos demais, o que acaba por gerar no interprete uma angustia da decisão que o paralisa. Quando colocados perante uma escolha entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde, existe sempre uma terceira hipótese que passa por escolher Robert Louis Stevenson, no fundo foi o que procuramos fazer ao propor uma resolução do problema baseada nos direitos fundamentais, isto é remetendo para um plano superior e consequentemente conformador da aplicação de todas as normas da ordem jurídica independentemente do seu ramo de origem.  

 

José Miguel de Freitas Toste, nº 20876

Bibliografia:

CALVÃO, Filipa Urbano - Direito do ambiente e tutela processual das relações de vizinhança. In VAZ, Manuel Afonso; LOPES, AZEREDO J.A. (Coord.) - Juris et de jure - nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1998. ISBN 972-8069-21-9. p.573-602.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, in BFDUC, vol. LXIX, 1993.

CARMONA, Mafada - O acto administrativo conformador de relações de vizinhança : Almedina, 2011.

GOMES, Carla Amado - Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2014.

MARQUES, Francisco Paes - As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares, (contributo para a sua compreensão substantiva), Almedina, 2011.

NOVAIS, Jorge Reis - As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição, Coimbra, 2010.

SILVA, Vasco Pereira da Silva - Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003.

SILVA, Vasco Pereira da Silva - Verdes são também os direitos do Homem (Publicismo, associativismo e privatismo no Direito do Ambiente), Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra, 1999, pág. 127 e ss.


[1] Alguma doutrina fala em efeito legalizador. Sobre as questões de terminologia relacionadas com o tema ver, CARMONA (2011) p.28
[2] MARQUES (2011) p.217 e ss., em especial as teses, p.435 e ss. e (2012) p.55
[3] NOVAIS (2010) p.569 e ss.
[4] CARMONA (2011) p.211 e SILVA (1999) p.135 e ss.
[5] CANOTILHO (1993)
[6] CALVÃO (1998)
[7] MARQUES (2011) p.82 e ss.
[8] MARQUES (2011) p.287 e ss.
[9] GOMES (2014) p. 114 e ss.
[10] NOVAIS (2010) p.842 e ss.
[11] CARMONA (2011) p.210
[12] CARMONA (2011) p.210
[13] SILVA (1995), p.214

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