Os Animais e o
Direito (do Ambiente)
I. Delimitação
do Objecto
O
assunto do estatuto dos animais nas suas relações com os seres humanos é campo
de inflamada discussão, no qual se debatem posições extremistas, em ambos os
sentidos: que equiparam os animais aos seres humanos ou que os inferiorizam
completamente a estes; e posições menos radicais, que, apesar de não
reconhecerem aos animais uma posição idêntica à dos seres humanos, não deixam
de defender que aqueles não podem ser completamente desprotegidos. Como parece
natural - e por essa mesma razão - este debate tem sido “remetido” para o campo
da filosofia, apenas reflexamente tendo sido tratado na área do direito. É este
o primeiro ponto que pretendo aclarar, pois não pretendo explanar e criticar a
discussão filosófica sobre este tema, o que me levaria demasiado longe do
âmbito da disciplina de direito do ambiente e do objecto deste artigo.
Que pretendo então é abordar a “questão dos
animais” de um ponto de vista (o mais) estritamente jurídico (possível),
especialmente da perspectiva do direito do ambiente. Não obstante, reconheço a
inevitabilidade de referências a certas correntes e entendimentos filosóficos,
pelo que pretendo que sejam sucintas e objectivas. Feitas estas duas
advertências, vejamos qual a situação jurídica actual dos animais.
II. Introdução
- O Animal e o Direito
O animal é, nas
palavras de ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA, “um ser organizado, dotado de
sensibilidades e de movimento voluntário”. É uma definição ampla em cabem os
seres humanos e ainda seres não-humanos. Mas o que é que os distingue?
O mesmo
autor propõe como critério a titularidade de razão, que se identifica não com a
possibilidade de falar, como defendia DESCARTES, mas com a liberdade e
inteligência de cada ser animal para prossecução dos seus desígnios. Assim se
distinguiria o ser humano ou racional, detentor dessa racionalidade, do ser não-humano
(ou animal, no sentido comum, e que utilizarei doravante como sinónimo de ser
não-humano), a que falta essa mesma racionalidade, visto que os seus
comportamentos são ditados por forças irresistíveis (instintos).
Desta
distinção decorre, essencialmente que os seres humanos e os animais irracionais
não são iguais. O que tem repercussões da maior importância no Direito pois, na
medida em que a personalidade jurídica, i. e. a susceptibilidade de ser titular
de direitos e obrigações, e a capacidade jurídica, i. e. a medida de
titularidade de direitos e de obrigações
e do seu exercício livre e pessoal, dependem da racionalidade. Assim, os
seres não-humanos não podem ser titulares de direitos, visto que o
(in)cumprimento do direito não lhes pode ser imputado, pois falta-lhes a vontade
e a liberdade para o fazerem. Esta falta de autodeterminação comportamental
reforça a exclusão dos animais enquanto sujeitos do direito que, como realidade
reguladora da sociedade (construída em torno do Homem), não regula as relações
com seres cujos comportamentos são determinados exclusivamente por instintos. Tal,
no entanto, não significa que não possam ser objecto do direito, quer directa
(por exemplo da lei) quer indirectamente (de direitos subjectivos), de seguida
veremos em que termos é que tal deve ser feito.
A
racionalidade vale também como critério de distinção entre pessoas não-humanas,
como é o caso das pessoas colectivas e dos nascituros, que, não obstante terem
uma personalidade jurídica “fictícia”, são susceptíveis de ser titulares de
direitos e obrigações. Tal deve-se à susceptibilidade de orientação racional,
ligada ao controlo humano a que estão irremediavelmente sujeitas as pessoa
colectivas e à futura aquisição de personalidade jurídica aquando do
nascimento, no caso dos nascituros.
Delimitado
está, pela negativa, o conceito de animal, mas falta ainda defini-lo pela
positiva. Tradicionalmente, os animais são equiparados a coisas, pelo que
quaisquer considerações deverão partir dessa comparação. A questão é
desenvolvida por JOSÉ BONIFÁCIO RAMOS, no artigo “O animal: coisa ou tertium genus?”, mas deve ser reponderada. Partindo do entendimento de
que os animais são insusceptíveis de ser titulares de direitos, devem ser
tratados como coisas ou, como diz o referido autor, tertium genus entre seres humanos, susceptíveis de ser titulares
de direitos, e coisas, definidas nos termos da lei civil (art. 202.º/1 do
Código Civil, doravante CC). No fundo a questão é: há, ou não, algo que
distingue os animais das coisas? E deve essa diferença conduzir a um tratamento
legal diferente dos animais?
Visto não
ser este o cerne do artigo penso que seria mais adequado não reproduzir na
íntegra os argumentos invocados pela doutrina, referindo os termos da discussão
de maneira sumária.
Partimos da
definição de coisa constante do CC, que define coisa no art. 202.º/n.º 1. Como “tudo aquilo que pode ser objecto de
relações jurídicas” o que, de acordo com a doutrina tradicional abrangeria
os animais, na medida em que também estes são objectos de direitos,
independentemente de algumas espécies estarem, legalmente, fora de comércio,
nos termos do art. 202.º/n.º 2 CC. São coisas móveis, pois não constam no
elenco do art. 204.º C, de acordo com o art. 205.º/n.º 1 CC. De acordo com este
entendimento os animais subsumir-se-iam ao conceito de coisas sem especiais
dificuldades.
Contra tal posição
tem-se vindo a invocar diversos argumentos, como por exemplo, a sensibilidade
característica dos animais (invocado por ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA), que os
distinguiria das coisas e lhes conferiria uma especial tutela jurídica (mas,
reitere-se, sem ir tão longe como ao ponto de lhes conferir a titularidade de
direitos). De facto o animal sofre, sente alegria, medo, inimizade e amizade e
isso é algo que não nos deve deixar indiferentes e faz com que os seres não-humanos sejam
verdadeiramente merecedores de uma protecção acrescida em relação às coisas e
que tenha em conta esta sua característica.
Outro
argumento (invocado por JOSÉ LUÍS BONIFÁCIO RAMOS) é aquele que defende que o
animal apenas é coisa porque, historicamente, a distinção entre pessoa e coisa
operava dicotomicamente, em termos que, por não caber na categoria de pessoa, o
animal era reconduzido à categoria de coisa. No fundo, uma das razões
subjacentes à actual classificação do animal como coisa seria (meramente)
histórica.
Por fim, a
própria classificação de animais como coisas, que levaria à consequente
aplicação irrestrita do regime das coisas, levaria a resultados nefastos que
desconsiderariam as especiais características destes seres sencientes.
O que dizer
disto? Parece-me que a diferença entre um animal e uma coisa (maxime, um objecto) é manifesta, pelos motivos invocados, e que
daí decorre a necessidade de um especial dever de protecção para com os animais,
especial em relação às coisas, sem que, no entanto, o regime das coisas seja
completamente afastado, pois revela ainda assim, alguma utilidade em relação à
regulação que incida sobre os animais (nomeadamente no que respeita à
propriedade dos animais e à sua transacção), assim, apesar de serem objecto de
direitos, à semelhança das coisas, distinguem-se delas por aquilo que têm de
semelhante com os seres humanos.
III. O Animal
e o Direito do Ambiente
Ao direito
do ambiente cabe também a protecção dos animais, visto que estes são um dos
seus componentes integrantes, na medida em que se refere a “fauna” (art.º 6.º/al. g) e 16.º da Lei de Bases do Ambiente, Lei
n.º 11/87, de 7 de Abril). Mas isso não significa que a tutela dos animais é
exclusiva do ambiente, este é apenas um dos ramos de direito, cabendo a defesa
dos animais (também) aos restantes ramos de direito, como o civil, o penal, o
fiscal, entre outros.
A integração
no âmbito deste ramo do direito justifica-se plenamente, visto que apenas
através da protecção dos animais, enquanto elementos integrantes do meio
ambiente, se garante a completa preservação deste. Por esse mesmo motivo me
parece que deve ser excluído do âmbito do direito do ambiente a tutela dos
animais domésticos (Decreto-Lei n.º 13/93, de 13 de Abril), ou a regulação das
raças canídeas perigosas e a responsabilidade decorrente dos danos que causem.
Mas em que termos é que deve ocorrer essa protecção?
No âmbito do
direito do ambiente levantam-se algumas especificidades relativas à protecção
dos animais, abordaremos algumas delas, sem pretensão de exaustividade.
a) A
primeira questão que se suscita – e à qual já dei resposta, de certa forma – é
a de saber se a tutela dos animais implica que lhes sejam atribuídos direitos?
Já vimos que assim não é. Esta questão apenas tem interesse para, na matéria de
direito do ambiente, afastar quaisquer laivos ecofundamentalistas (que, de
forma errada mas frequente, se associam ao tema da protecção dos animais).
Assim a protecção dos animais vai integrar, essencialmente, a tutela jurídica
objectiva do ambiente, na medida em que o se exige é a protecção de um bem
ambiental como já referi, mas subjectiva também, podendo qualquer um exigir, em
defesa do seu direito ao ambiente, que não sejam extintas raças animais sem
justificação.
b) No plano
da tutela subjectiva desempenham especial relevância as Organizações
Não-Governamentais Ambientais (doravante ONGA), muitas das quais se dedicam
exclusivamente à tutela dos animais. São exemplos dessas ONGA a Liga Portuguesa
dos Direitos do Animal, a FLIPPER – Associação de Protecção de Mamíferos Marinhos
e a Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens – FAPAS. A estas associações
ambientais zoófilas é reconhecida legitimidade para promover processualmente a
defesa do ambiente, nomeadamente dos animais (art.º 9.º e 11.º da Lei 35/98, de
18 de Julho e 10.º e 1.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro).
c) Por fim,
a protecção dos animais é assegurada por legislação avulsa que se destina a
regular aspectos específicos. Esta protecção é normalmente consagrada através
de legislação concernente a raças ou tipos de animais em particular, como é o
caso da lei n.º 90/88, de 13 de Agosto e do Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de
Abril relativos à protecção do lobo ibérico, ou do Decreto-Lei n.º 204/90, de
20 de Junho, relativo a à protecção de animais selvagens, necrófagos e
predadores (que visou, entre outros fins, reagir contra o desaparecimento de
abutres de Portugal). Cabe apenas fazer uma referência à actividade
internacional e europeia nesta matéria, nomeadamente à Declaração Universal dos
Direitos dos Animais, de Paris, de 1978 (que, de facto, atribui diversos
direitos aos animais, como por exemplo o direito à igualdade, à existência e ao
respeito depois de morto) e à Directiva 92/43/CEE doo Conselho, de 21 de Maio
de 1992 relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora
selvagens (a comummente chamada Directiva Habitats).
IV. CONCLUSÃO
No fim
deste breve estudo penso que há uma conclusão que se impõe, que os animais
devem ter um tratamento condigno enquanto animais, que é o que são. Não
pessoas, nem coisas, mas um tertium genus,
cuja existência e diferença se impõe. Esta posição, para que seja plenamente
operacional, está dependente de direito a constituir, em especial do direito do
ambiente, que, no entanto, deve prescindir, de certa forma, da sua lógica de
ponderação e conciliação com os interesses económicos, para que possa efectivar
a tutela de espécies em perigo. De qualquer modo, a defesa dos animais nada
ganha caso o direito do ambiente consuma a totalidade da protecção daqueles,
esta defesa deve ser articulada com os demais ramos do direito, o que, como
sabemos, não obsta a que sejam acoplados debaixo do mesmo escopo – a protecção
dos animais.
V. Bibliografia
ARAÚJO, Fernando, A hora dos animais, Almedina 2003
COSTA, António Pereira da, Dos animais (o direito e os
direitos), Coimbra 1998
GARCIA, Maria da Glória, O lugar do direito na protecção
do ambiente, Almedina, 2007
GOMES, Carla Amado, Risco e modificação do acto
autorizativo concretizador
de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007.
GOUVEIA, Bacelar, A prática de tiro aos pombos, a nova
lei de protecção dos animais e a constituição portuguesa, in Revista Jurídica
do Urbanismo e do Ambiente, nº 13 (2000)
RAMOS, José Luís Bonifácio, O animal: coisa ou tertium genus? In Estudos em homenagem ao prof. Doutor Luís Carvalho
Fernandes - Vol. 2,
Lisboa, 2011.
SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de direito lições de
direito do ambiente, Almedina 2004
Lourenço Fernandes Tomás, n.º
20691
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