sábado, 12 de abril de 2014

Os Animais e o Direito (do Ambiente)

I. Delimitação do Objecto
            O assunto do estatuto dos animais nas suas relações com os seres humanos é campo de inflamada discussão, no qual se debatem posições extremistas, em ambos os sentidos: que equiparam os animais aos seres humanos ou que os inferiorizam completamente a estes; e posições menos radicais, que, apesar de não reconhecerem aos animais uma posição idêntica à dos seres humanos, não deixam de defender que aqueles não podem ser completamente desprotegidos. Como parece natural - e por essa mesma razão - este debate tem sido “remetido” para o campo da filosofia, apenas reflexamente tendo sido tratado na área do direito. É este o primeiro ponto que pretendo aclarar, pois não pretendo explanar e criticar a discussão filosófica sobre este tema, o que me levaria demasiado longe do âmbito da disciplina de direito do ambiente e do objecto deste artigo.
             Que pretendo então é abordar a “questão dos animais” de um ponto de vista (o mais) estritamente jurídico (possível), especialmente da perspectiva do direito do ambiente. Não obstante, reconheço a inevitabilidade de referências a certas correntes e entendimentos filosóficos, pelo que pretendo que sejam sucintas e objectivas. Feitas estas duas advertências, vejamos qual a situação jurídica actual dos animais.

II. Introdução - O Animal e o Direito
O animal é, nas palavras de ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA, “um ser organizado, dotado de sensibilidades e de movimento voluntário”. É uma definição ampla em cabem os seres humanos e ainda seres não-humanos. Mas o que é que os distingue?
O mesmo autor propõe como critério a titularidade de razão, que se identifica não com a possibilidade de falar, como defendia DESCARTES, mas com a liberdade e inteligência de cada ser animal para prossecução dos seus desígnios. Assim se distinguiria o ser humano ou racional, detentor dessa racionalidade, do ser não-humano (ou animal, no sentido comum, e que utilizarei doravante como sinónimo de ser não-humano), a que falta essa mesma racionalidade, visto que os seus comportamentos são ditados por forças irresistíveis (instintos).
Desta distinção decorre, essencialmente que os seres humanos e os animais irracionais não são iguais. O que tem repercussões da maior importância no Direito pois, na medida em que a personalidade jurídica, i. e. a susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, e a capacidade jurídica, i. e. a medida de titularidade de direitos e de obrigações  e do seu exercício livre e pessoal, dependem da racionalidade. Assim, os seres não-humanos não podem ser titulares de direitos, visto que o (in)cumprimento do direito não lhes pode ser imputado, pois falta-lhes a vontade e a liberdade para o fazerem. Esta falta de autodeterminação comportamental reforça a exclusão dos animais enquanto sujeitos do direito que, como realidade reguladora da sociedade (construída em torno do Homem), não regula as relações com seres cujos comportamentos são determinados exclusivamente por instintos. Tal, no entanto, não significa que não possam ser objecto do direito, quer directa (por exemplo da lei) quer indirectamente (de direitos subjectivos), de seguida veremos em que termos é que tal deve ser feito.
A racionalidade vale também como critério de distinção entre pessoas não-humanas, como é o caso das pessoas colectivas e dos nascituros, que, não obstante terem uma personalidade jurídica “fictícia”, são susceptíveis de ser titulares de direitos e obrigações. Tal deve-se à susceptibilidade de orientação racional, ligada ao controlo humano a que estão irremediavelmente sujeitas as pessoa colectivas e à futura aquisição de personalidade jurídica aquando do nascimento, no caso dos nascituros.
Delimitado está, pela negativa, o conceito de animal, mas falta ainda defini-lo pela positiva. Tradicionalmente, os animais são equiparados a coisas, pelo que quaisquer considerações deverão partir dessa comparação. A questão é desenvolvida por JOSÉ BONIFÁCIO RAMOS, no artigo “O animal: coisa ou tertium genus?”, mas deve ser reponderada. Partindo do entendimento de que os animais são insusceptíveis de ser titulares de direitos, devem ser tratados como coisas ou, como diz o referido autor, tertium genus entre seres humanos, susceptíveis de ser titulares de direitos, e coisas, definidas nos termos da lei civil (art. 202.º/1 do Código Civil, doravante CC). No fundo a questão é: há, ou não, algo que distingue os animais das coisas? E deve essa diferença conduzir a um tratamento legal diferente dos animais?
Visto não ser este o cerne do artigo penso que seria mais adequado não reproduzir na íntegra os argumentos invocados pela doutrina, referindo os termos da discussão de maneira sumária.
Partimos da definição de coisa constante do CC, que define coisa no art. 202.º/n.º 1. Como “tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas” o que, de acordo com a doutrina tradicional abrangeria os animais, na medida em que também estes são objectos de direitos, independentemente de algumas espécies estarem, legalmente, fora de comércio, nos termos do art. 202.º/n.º 2 CC. São coisas móveis, pois não constam no elenco do art. 204.º C, de acordo com o art. 205.º/n.º 1 CC. De acordo com este entendimento os animais subsumir-se-iam ao conceito de coisas sem especiais dificuldades.
Contra tal posição tem-se vindo a invocar diversos argumentos, como por exemplo, a sensibilidade característica dos animais (invocado por ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA), que os distinguiria das coisas e lhes conferiria uma especial tutela jurídica (mas, reitere-se, sem ir tão longe como ao ponto de lhes conferir a titularidade de direitos). De facto o animal sofre, sente alegria, medo, inimizade e amizade e isso é algo que não nos deve deixar indiferentes e faz com  que os seres não-humanos sejam verdadeiramente merecedores de uma protecção acrescida em relação às coisas e que tenha em conta esta sua característica.
Outro argumento (invocado por JOSÉ LUÍS BONIFÁCIO RAMOS) é aquele que defende que o animal apenas é coisa porque, historicamente, a distinção entre pessoa e coisa operava dicotomicamente, em termos que, por não caber na categoria de pessoa, o animal era reconduzido à categoria de coisa. No fundo, uma das razões subjacentes à actual classificação do animal como coisa seria (meramente) histórica.
Por fim, a própria classificação de animais como coisas, que levaria à consequente aplicação irrestrita do regime das coisas, levaria a resultados nefastos que desconsiderariam as especiais características destes seres sencientes.
O que dizer disto? Parece-me que a diferença entre um animal e uma coisa (maxime, um objecto) é manifesta, pelos motivos invocados, e que daí decorre a necessidade de um especial dever de protecção para com os animais, especial em relação às coisas, sem que, no entanto, o regime das coisas seja completamente afastado, pois revela ainda assim, alguma utilidade em relação à regulação que incida sobre os animais (nomeadamente no que respeita à propriedade dos animais e à sua transacção), assim, apesar de serem objecto de direitos, à semelhança das coisas, distinguem-se delas por aquilo que têm de semelhante com os seres humanos.

III. O Animal e o Direito do Ambiente
Ao direito do ambiente cabe também a protecção dos animais, visto que estes são um dos seus componentes integrantes, na medida em que se refere a “fauna” (art.º 6.º/al. g) e 16.º da Lei de Bases do Ambiente, Lei n.º 11/87, de 7 de Abril). Mas isso não significa que a tutela dos animais é exclusiva do ambiente, este é apenas um dos ramos de direito, cabendo a defesa dos animais (também) aos restantes ramos de direito, como o civil, o penal, o fiscal, entre outros.
A integração no âmbito deste ramo do direito justifica-se plenamente, visto que apenas através da protecção dos animais, enquanto elementos integrantes do meio ambiente, se garante a completa preservação deste. Por esse mesmo motivo me parece que deve ser excluído do âmbito do direito do ambiente a tutela dos animais domésticos (Decreto-Lei n.º 13/93, de 13 de Abril), ou a regulação das raças canídeas perigosas e a responsabilidade decorrente dos danos que causem. Mas em que termos é que deve ocorrer essa protecção?
No âmbito do direito do ambiente levantam-se algumas especificidades relativas à protecção dos animais, abordaremos algumas delas, sem pretensão de exaustividade.
a) A primeira questão que se suscita – e à qual já dei resposta, de certa forma – é a de saber se a tutela dos animais implica que lhes sejam atribuídos direitos? Já vimos que assim não é. Esta questão apenas tem interesse para, na matéria de direito do ambiente, afastar quaisquer laivos ecofundamentalistas (que, de forma errada mas frequente, se associam ao tema da protecção dos animais). Assim a protecção dos animais vai integrar, essencialmente, a tutela jurídica objectiva do ambiente, na medida em que o se exige é a protecção de um bem ambiental como já referi, mas subjectiva também, podendo qualquer um exigir, em defesa do seu direito ao ambiente, que não sejam extintas raças animais sem justificação.
b) No plano da tutela subjectiva desempenham especial relevância as Organizações Não-Governamentais Ambientais (doravante ONGA), muitas das quais se dedicam exclusivamente à tutela dos animais. São exemplos dessas ONGA a Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, a FLIPPER – Associação de Protecção de Mamíferos Marinhos e a Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens – FAPAS. A estas associações ambientais zoófilas é reconhecida legitimidade para promover processualmente a defesa do ambiente, nomeadamente dos animais (art.º 9.º e 11.º da Lei 35/98, de 18 de Julho e 10.º e 1.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro).
c) Por fim, a protecção dos animais é assegurada por legislação avulsa que se destina a regular aspectos específicos. Esta protecção é normalmente consagrada através de legislação concernente a raças ou tipos de animais em particular, como é o caso da lei n.º 90/88, de 13 de Agosto e do Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril relativos à protecção do lobo ibérico, ou do Decreto-Lei n.º 204/90, de 20 de Junho, relativo a à protecção de animais selvagens, necrófagos e predadores (que visou, entre outros fins, reagir contra o desaparecimento de abutres de Portugal). Cabe apenas fazer uma referência à actividade internacional e europeia nesta matéria, nomeadamente à Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de Paris, de 1978 (que, de facto, atribui diversos direitos aos animais, como por exemplo o direito à igualdade, à existência e ao respeito depois de morto) e à Directiva 92/43/CEE doo Conselho, de 21 de Maio de 1992 relativa à preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens (a comummente chamada Directiva Habitats).

IV. CONCLUSÃO
            No fim deste breve estudo penso que há uma conclusão que se impõe, que os animais devem ter um tratamento condigno enquanto animais, que é o que são. Não pessoas, nem coisas, mas um tertium genus, cuja existência e diferença se impõe. Esta posição, para que seja plenamente operacional, está dependente de direito a constituir, em especial do direito do ambiente, que, no entanto, deve prescindir, de certa forma, da sua lógica de ponderação e conciliação com os interesses económicos, para que possa efectivar a tutela de espécies em perigo. De qualquer modo, a defesa dos animais nada ganha caso o direito do ambiente consuma a totalidade da protecção daqueles, esta defesa deve ser articulada com os demais ramos do direito, o que, como sabemos, não obsta a que sejam acoplados debaixo do mesmo escopo – a protecção dos animais.

V. Bibliografia
ARAÚJO, Fernando, A hora dos animais, Almedina 2003
COSTA, António Pereira da, Dos animais (o direito e os direitos), Coimbra 1998
GARCIA, Maria da Glória, O lugar do direito na protecção do ambiente, Almedina, 2007
GOMES, Carla Amado, Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra Editora, 2007.
GOUVEIA, Bacelar, A prática de tiro aos pombos, a nova lei de protecção dos animais e a constituição portuguesa, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 13 (2000)
RAMOS, José Luís Bonifácio, O animal: coisa ou tertium genus? In Estudos em homenagem ao prof. Doutor Luís Carvalho Fernandes - Vol. 2, Lisboa, 2011.
SILVA, Vasco Pereira da, Verde cor de direito lições de direito do ambiente, Almedina 2004

Lourenço Fernandes Tomás, n.º 20691


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