sábado, 31 de maio de 2014


OS CONTRATOS DE ADAPTAÇÃO AMBIENTAL, A LEGALIDADE E A TUTELA DE TERCEIROS


O presente texto irá versar sobre os contratos de adaptação ambiental e do seu enquadramento no ordenamento jurídico português. Não nos comprometemos a fazer aqui um extenso estudo sobre o tema, debruçar-nos-emos apenas sobre alguns pontos que nos parecem relevantes e merecedores de análise.


Os contratos de adaptação inserem-se nos instrumentos preventivos[1] de que fala Carla Amado Gomes e como tal seguem a lógica subjacente ao princípio da prevenção. Têm consagração específica no artigo 78.º do Decreto-Lei n.º 236/98, de 1 de Agosto, que versa sobre a qualidade ambiental da água. É de notar que a admissibilidade destes contratos resulta do artigo 278.º do Código dos Contratos Públicos (CPP), que prevê a possibilidade de a Administração os poder celebrar[2]. O artigo 35.º/2 da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril) dispunha que "O Governo poderá celebrar contratos-programa com vista a reduzir gradualmente a carga poluente das atividades poluidoras”, mas é curioso constatar que na nova Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 19/2014, de 14 de Abril) não há correspondência expressa a este artigo.

Tendo por base o artigo 78.º/3 do Decreto-Lei n.º 236/98 podemos afirmar que os contratos de adaptação visam a concessão de um prazo e a fixação de um calendário para a adaptação da legislação em vigor. Na verdade o que se pretende é o não exercício do poder sancionatório da Administração[3],[4], havendo um acordo em relação ao não cumprimento das normas legais a Administração não poderá vir dizer depois que a lei não está a ser cumprida. Coloca-se, portanto, um problema relacionado com o princípio da legalidade visto que estes contratos têm um sentido derrogatório do regime legalmente previsto, o que parece contrariar o artigo 112.º/5 da Constituição da República Portuguesa[5] (CRP). Carla Amado Gomes vem pronunciar-se pela inconstitucionalidade destes contratos precisamente por violarem o artigo 112.º/5 CRP, na medida em que são contratos públicos a alterar normas legais. Para a Autora, se estes contratos apenas tivessem eficácia inter partes a sua constitucionalidade estaria salvaguardada. Mark Kirkby vem também pronunciar-se pela inconstitucionalidade, afirmando que o 78.º do Decreto-Lei n.º236/98 vem permitir à Administração, por via contratual, suspender os efeitos de normas que ela própria consagrou o que viola o artigo 112.º/5 CRP, desprezando-se a hierarquia dos atos normativos que o artigo consagra. Num sentido mais benevolente pronuncia-se o Professor Vasco Pereira da Silva[6] que defende que deve fazer-se uma ponderação de princípios (por um lado os princípios da constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade, e por outro os princípios da eficácia da realização da política do ambiente pela via contratual, da participação e colaboração dos particulares no exercício da administração do ambiente e o da tutela da confiança dos particulares). Se por um lado não pode haver contratos administrativos que violem os princípios constitucionais, por outro não se pode negar por completo a possibilidade de celebração destes contratos. Para o Professor os contratos de adaptação serão possíveis quando: a) caibam na margem de livre decisão da Administração; b) encontrem cabimento na previsão legislativa; c) não correspondam a uma situação de fraude à Constituição ou à lei; d) não coloquem em causa princípios fundamentais da atuação administrativa. Parece-nos que a posição do Professor Vasco Pereira da Silva é a mais sensata uma vez que não se limita a “declarar” a inconstitucionalidade dos contratos de adaptação ambiental fazendo um esforço para encontrar soluções que se enquadrem no ordenamento jurídico português. O que se pretende, no fundo, com estes contratos é evitar que as entidades infratoras acumulem sanções pelo não cumprimento das normas legais a que ainda não se adaptaram. O infrator não deixa de o ser só porque celebrou um contrato de adaptação com a Administração, o que acontece é que lhe é conferido um prazo para que consiga chegar à zona da legalidade. Mas não ignoremos o facto de que se no prazo acordado o infrator não chegar a essa zona de legalidade já nada o poderá “salvar” dessas sanções pecuniárias.

Como bem nota o Professor Vasco Pereira da Silva é possível fazer a divisão destes contratos em dois momentos chave. Primeiro temos um contrato-tipo entre as Associações representativas dos sectores agroindustriais e agroalimentares, por um lado, e o Ministério do Ambiente e o Ministério responsável pelo sector de atividade económica, por outro. Depois temos uma segunda fase de adesão em que as unidades empresariais do sector podem aderir ao contrato de adaptação, desde que nos três meses seguintes à assinatura do contrato-tipo (art.º 78.º/4 do Decreto-Lei n.º 236/98).

Cumpre clarificar a natureza dos contratos de adaptação uma vez que é a partir dela que saberemos que regime seguir na reação contra lesões decorrentes deles. Parece-nos claro que os contratos de adaptação são verdadeiros contratos administrativos, pois que se apresentam como um acordo de vontades que tem obrigatoriamente como contratante uma autoridade pública e são geradores de direitos e deveres de direito público (vide artigo 1.º/6 CPP). Fernanda Maças acaba por delimitá-los como "contratos com obrigações bem definidas para ambas as partes e cominando sanções para o não cumprimento das prescrições e prazos constantes do cronograma de adaptação". O Professor Vasco Pereira da Silva defende a utilização de um conceito amplo de contrato administrativo de modo que este abranja todos os acordos de vontade decorrentes do exercício da função administrativa. Deste modo possibilita-se a unificação do regime jurídico da atividade da Administração Pública. Tratando-se de um contrato administrativo aplicam-se, naturalmente[7], as regras gerais dos contratos administrativos.

Agora que temos como assente a natureza jurídica do contrato de adaptação, passemos à análise da tutela jurisdicional de terceiros. Antes de mais é necessário identificar quem são os terceiros a estes contratos, ou melhor, que terceiros têm legitimidade para os impugnar. Sendo o ambiente um dos interesses protegidos pelo artigo 1.º/2 da Lei de Participação Procedimental e Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto - LAP), os terceiros[8] encontram legitimidade no artigo 2.º/2 da referida Lei, não sendo necessário qualquer interesse direto na demanda qualquer particular tem legitimidade para agir na defesa do ambiente. A Ação Popular, aqui, compreende a ação para defesa do ambiente e o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer atos administrativos lesivos.

A tutela de terceiros ao contrato de adaptação relativamente à legalidade deste tem de ser feita no âmbito da teoria do ato destacável, permitindo-se a impugnação dos atos destacáveis prévios à celebração do contrato. A teoria dos atos destacáveis[9] assegura a impugnabilidade do ato de forma autónoma[10], afirmando a autonomia dos atos pré-contratuais ao contrato para efeitos substantivos e processuais. Nos dias de hoje é indiscutível que os atos pré-contratuais são destacáveis do contrato (que venha a ser) celebrado (vide artigo 100.º Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA). E qual é o ato pré-contratual (destacável) dos contratos de adaptação ambiental? Em última instância, na ausência de um ato administrativo, invoca-se o ato administrativo implícito[11] em que a própria decisão de contratar se consubstancia.

Assim, qualquer cidadão pode reagir contra atos destacáveis para defesa do interesse ambiente através de uma ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo, aferindo-se a sua legitimidade através do artigo 12.º/1 da LAP.



Bibliografia:
GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2012
KIRKBY, Mark Bobela-Mota, Os Contratos de Adaptação Ambiental, Lisboa, AAFDL, 2001
MAÇÃS, Maria Fernanda, Os Acordos Sectoriais como um Instrumento da Política Ambiental, in Revista do CEDOUA, 5, ano III, 2000,
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002



[1] Para além destes, Carla Amado Gomes faz a distinção também entre instrumentos reparatórios, repressivos e de fomento.
[2] A este propósito é importante referir a opção de escolha entre ato e contrato resultante deste artigo.
[3] Fernanda Maçãs, Os Acordos Sectoriais…
[4] Mark Kirkby: "O acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos sancionatórios"
[5] Artigo 112.º Atos normativos: 5. Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
[6] Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente pp. 217ss
[7] Nas palavras de Mark Kirkby.
[8] Também é reconhecida legitimidade às Associações de defesa do ambiente (artigo 2.º/2 da LAP)
[9] Contrapõe-se a esta, a Teoria da Incorporação que preceitua que os atos pré-contratuais se dissolvem no contrato e só são impugnáveis através deste.
[10] Como se retirava do artigo 185.º Código de Procedimento Administrativo, entretanto revogado com a entrada em vigor do CCP (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro)
[11] Ainda que não esteja previsto na lei um ato expresso prévio à celebração do contrato, depreende-se que existiu um, que está implícito na celebração do contrato pela Administração: a decisão de contratar.


Graça Silva, 19629

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