quarta-feira, 21 de maio de 2014

O interesse público VS interesse ecológico:


“Dos dados ecológicos aos números económicos, as conclusões retiram-se rapidamente: 3.100 milhões euros/ano (correspondentes a 6% do PIB mundial) são o custo das perdas de biodiversidade até ao ano 2050, se os modus operandi se mantiverem, inalterados.”
                                                                                                    Carla Amado Gomes


A biodiversidade (compreendendo a diversidade dentro de cada espécie, entre as espécies e dos ecossistemas) e a sua protecção representam, hoje, um dos temas mais discutidos da actualidade e sem dúvida uma temática que dará muito que falar, tanto num futuro próximo como num futuro longínquo.
Segundo os dados avançados pela União para a Conservação da Natureza, os números são alarmantes: 17.291 espécies de 47.677 monitorizadas estão ameaçadas de extinção; dos 5.490 mamíferos recenseados no Planeta, 79 estão oficialmente extintos e 449 estão ameaçados. E a lista continua, parecendo mesmo infindável.
A pergunta que se coloca é a seguinte: O que foi feito em Portugal para preservar esta biodiversidade? Ora bem, a própria CRP, no seu artigo 66.º/2 als. c) e d), impõe como objectivos cimeiros do Estado português a conservação da Natureza e a gestão nacional dos recursos naturais. A Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), no seu artigo 4.º/als. d) e e), acentua a necessidade de protecção da biodiversidade através de vários instrumentos. O art.29.º/ 1 da referida LBA alude à protecção ambiental através de uma rede nacional de áreas protegidas. Entretanto após isto, em Portugal foram criados vários diplomas que desenvolveram esta rede de áreas protegidas: o DL nº 142/2008, de 24 de Julho criou o Regime Jurídico de Conservação da Natureza e da biodiversidade (=RCNB); de acordo com este regime, na Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN) coexistem a Reserva Ecológica Nacional (REN), e Reserva Agrícola Nacional (RAN) e zonas de domínio público hídrico, por um lado, e o Sistema Nacional de Áreas de Conservação, por outro.
No entanto, todos nós nos podemos perguntar qual a razão por que existindo uma tão vasta área de sistemas de protecção, muitas vezes essas mesmas áreas não são respeitadas? Embora as respostas possam ser variadas, há uma que ressalta à vista após uma análise dos diplomas acima mencionados: a neutralização do interesse de conservação do ambiente em face de outros interesses sociais e económicos; nomeadamente o tão interesse geral/público! Pois, de facto o Estado português preocupa-se em criar uma rede de conservação da Natureza e biodiversidade, mas o legislador destes sistemas “lembrou-se” também de nomear o “interesse geral” como principal escape destes mesmos regimes. Numa primeira análise o interesse público pode não parecer tão fácil assim de obter, mas é fácil criar uma Rede Ecológica Nacional (por exemplo) sabendo de antemão que criamos também mecanismos que possibilitam a construção e edificação de infra-estruturas dentro desta mesma rede, em nome do dito interesse geral, mesmo que ameacemos vários habitats e várias espécies daquela área.
Tomamos como exemplo o artigo 21.º do DL nº 166/2008, de 22 de Agosto, que subverte o regime do artigo 20.º (que interdita uma série de usos e acções de iniciativa pública ou privada, nas áreas da REN- excepto se forem compatíveis com a própria protecção ecológica e ambiental prevista com a REN), possibilitando a construção nas áreas protegidas, quando acções de relevante interesse público o justifiquem! É preciso relembrar que isto pode ser feito através de despacho do membro de Governo responsável pelas áreas do ambiente e OT, ou membro competente em razão da matéria (artigo 21.º/1). Para mais se indica que as infra-estruturas sujeitas a AIA, quando dotadas de avaliação de impacte ambiental favorável, têm o interesse público de acção reconhecido inerentemente. Isto aplicando-se, sabendo nós, mesmo naqueles casos em que a DIA não foi emitida pela APA ou CCDR, mas antes por um membro do Governo, já que a DIA seria anteriormente desfavorável, de acordo com os números 7 e 8 do artigo 16.º do DL nº 151-B/2013, de 31 de Outubro.
Também os artigos 98.º, 99.º e 100.º do DL nº 380/99 (entretanto alterado pelo DL nº 46/09, de 2 de Fevereiro), permitem fazer ceder as razões de tutela ambiental perante situações de “reconhecido interesse nacional ou regional”. Situações aliás que têm vindo a ser banalizadas nos últimos anos.
Pense-se também no artigo 51.º/3 al. b) do RCNB (DL 142/2008) que nos indica que se no prazo de 45 dias não for emitida autorização ou parecer da autoridade nacional, sobre a viabilidade de realização de um projecto ou actividade numa das áreas protegidas de referência, então o silêncio é entendido como assentimento a esse mesmo projecto!
Acrescente-se ainda o próprio artigo 10.º/10 e 11 do DL nº 140/99, que consagra o princípio do poluidor-pagador, mas não deixa de autorizar essa mesma poluição!
Estes exemplos, estando longe de ser os últimos, “denotam a fragilidade do interesse de protecção do ambiente em face da cláusula do interesse geral” [1]
Não se podem criar tão complexas áreas para depois deixar nas mãos da Administração muitas das decisões que privilegiam os interesses de alguns em detrimento do verdadeiro interesse ecológico da RFCN; sendo que estes projectos a nível ambiental, a médio e longo prazos, consequências desastrosas.
É certo que não podemos ficar indiferentes às razões pelas quais isto acontece: é verdade que muitas vezes as restrições presentes em toda a RFCN, que incidem sobre o uso de áreas de protecção da biodiversidade, são entraves ao desenvolvimento económico dos municípios. E que isto força muitas vezes a neutralização do interesse ecológico por razões socioeconómicas. Mas também é verdade que no DL nº 166/2008, no seu atrigo 35.º, o legislador estabeleceu a oferta de contrapartidas aos municípios cuja circunscrição se veja povoada por terrenos da REN. Logo os municípios não estão totalmente despidos de vantagens socioeconómicas com a sua integração em redes de preservação ambiental!
As medidas contra o “reinado” deste interesse geral são difíceis de destacar, mas uma maior co-responsabilização das autarquias corresponderá a uma maior eficácia das políticas de defesa da biodiversidade biológica, em especial das medidas de conservação in situ[2]
Para José Ferreira de Almeida, para os Sítios criados pela Rede Natura 2000, só a ideia de Planos Sectoriais não chega, uma vez que estes não vinculam directamente os particulares, e foram pensados apenas para as políticas sectoriais. Necessário se torna que cada Sítio tenha um plano de gestão associado aos Planos Especiais de Ordenamento do Território.
Já que o despacho ministerial presente na Rede Natura 2000 constitui muitas vezes uma afronta aos valores da biodiversidade defendidos pelo mesmo diploma (e por outros), uma outra opção seria inserir neste despacho conjunto também o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, de forma a atingir um controlo mais rigoroso a nível ambiental .
Corremos alguns perigos por parte do legislador ao dar “permissão de entrada pela janela de um projecto ao qual tenha fechado a porta” [3]. Já que no plano comunitário o Estado português pode incorrer em responsabilidade internacional (sujeita-se a ser perseguido pela Comissão a título de acção por incumprimento dos compromissos assumidos perante a EU).
Uma coisa é criarmos um quadro geral em que o interesse público, num determinado projecto, também tenha de ser tido em conta, “Outra coisa é o interesse público do projecto constituir um pressuposto da sua avaliação ambiental positiva- ideia desprovida de qualquer racionalidade”. [4]
Socialmente o interesse ecológico ainda é visto como um capricho de alguns; como uma defesa feita pelas associações ambientais, e não como o verdadeiro interesse socioeconómico que representa, e com que Estados que o preservarem têm muito a ganhar. Afinal, 1/6 da população mundial depende das áreas protegidas para assegurar a sua sobrevivência; em países como a Bolívia o segmento de turismo da Natureza ligado às áreas protegidas gera milhares de postos de emprego e suporta indirectamente mais de 100.000 pessoas. Um investimento de 45 biliões de dólares em áreas protegidas pode gerar até 5 triliões de dólares anuais em produção de utilidades naturais como a defesa contra cheias, purificação de recursos hídricos e o combate ao sequestro de carbono.
Por todos estas razões é tempo de deixarmos o interesse geral dominar o interesse ecológico, e percebermos que o primeiro consome este último. Uma programática dos dois interesses em conjunto mostrar-se-ia bem mais vantajosa para os interesses públicos perseguidos pelos Estados.


[1]Gomes, Carla Amado, Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, in Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP,2010

[2]- Almeida, José Ferreira de, O velho, o novo e o reciclado (...), in Ano Internacional de Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010. Ideia avançada pelo autor.

[3]- Carla Amado Gomes, na mesma publicação já referida, pág.29

[4]- Antunes, Tiago, Singularidade de um regime ecológico- o regime da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências de análise (…), in Ano Internacional da Biodiversidade, e-book, Lisboa, ICJP, 2010


Sofia Costa Dias, aluna nº 20997




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