domingo, 1 de junho de 2014

Breves considerações sobre a avaliação de incidências ambientais


Um espectro paira sobre o Regime Jurídico da Rede Natura 2000 (RJRN2000) – O espectro da avaliação de incidências ambientais (AIncA). Previsto no art.º 10, do Decreto-Lei n.º140/99 a AIncA do ponto de vista teórico apresenta-se como um importante instrumento de protecção preventiva do ambiente. Definida pelo diploma no seu artigo 3.º nº1 al. p) como “a avaliação prévia das incidências ambientais das acções, planos ou projectos, que incumbe à entidade competente para a decisão final ou à entidade competente para emitir parecer ao abrigo do presente diploma.”

O âmbito de aplicação do regime surge prima facie previsto no nº1 do art.º 10.º do RJRN2000, nele se estabelece a sujeição a AIncA de acções, planos ou projectos que, não se relacionando directa ou indirectamente com a gestão da área protegida, sejam susceptíveis de a afectar de forma significativa, quando considerados quer individualmente quer conjugados com outras acções, planos ou projectos.

O recurso ao conceito indeterminado forma significativa, para qualificar a afectação, embora seja censurável, por introduzir “uma elevada dose de incerteza e subjectividade na determinação das actividades” [1]sujeitas a AIncA, não deverá ser a principal objecção à forma como quer as directivas quer o diploma nacional delimitam o âmbito de aplicação do regime. Em nosso entender, a grande debilidade está no facto de a norma exigir um juízo de prognose ao intérprete, independentemente da adjectivação ou não da afectação, que tem por objecto a mesma realidade que a AIncA visa determinar, não conseguimos compreender, de que forma a sujeição ou não a um regime jurídico pode ser determinada por um juízo de existência ou não de factos que este mesmo regime jurídico visa delimitar e controlar.

Esta constatação lógico-formal que em nosso entender acaba por suplantar os leque de críticas fundado na utilização de conceitos indeterminados, só não procederá caso se entenda que a AIncA apenas visa uma análise de afectações já previamente determinadas não tendo por fito identificação de possíveis impactes ambientais, no entanto tal interpretação não nos parece a mais correcta atendendo ao conteúdo da al. c) do nº 6 do art.º 10.º do RJRN2000.

A delimitação realizada nos parágrafos anteriores foi, como supra referido, realizada prima facie, porque realizada apenas numa perspectiva estática, cumpre agora proceder a um recorte mais pormenorizado tendo por base uma perspectiva dinâmica, isto é, considerando a AIncA nas relações que estabelece com as suas congéneres, Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) e Avaliação Ambiental Estratégica (AAE)[2].

Relativamente à relação entre a AIncA e a AAE, o primeiro aspecto a referir, prende-se com o facto de o âmbito de aplicação do primeiro instrumento determinar a extensão do âmbito de aplicação do segundo, nos termos da al. b) do nº 1 do art.º 3.º do DL n.º 232/2007, o que origina uma sobreposição, resolvida pelo mesmo art.º 3.º nos n.ºs 8 e 9, que determinam a absorção do procedimento de AIncA pelo de AAE, pelo que, como bem afirma Tiago Antunes, a  AIncA “deixo de existir a se quanto a planos, mantendo-se apenas para acções e projectos”[3].

Também relativamente às situações de sobreposição ente AIA e AIncA o legislador optou pela internalização do segundo regime no primeiro, o que resulta de forma clara do disposto no n.º 2 do art.º 10.º, o que determina que mesmo em relação a acções e projectos a existência de uma AIncA autónoma é uma realidade residual.

Para além das duas internalizações referidas nos parágrafos anteriores, o art.º 10.º no seu nº 5, ainda opera uma terceira, ao remeter a AIncA para os pareceres, quando a eles haja lugar, das CCDRS ou ICNF, nºs 2, 3 e 5 do art.º 9.º do RJRN2000.

Como ficou demonstrado o regime da AIncA foi construído recorrendo a um conjunto de remissões que acabam por abranger uma parte significativa das situações ao qual este se aplica. Assemelhando-se em termos estruturais a uma empresaria sem existência física e que cujo processo produtivo é todo ele realizado por recurso a mecanismos de outsourcing.

No entanto é possível, ainda assim, encontrar um conjunto de situações às quais se aplica de forma directa o regime em análise e em relação às quais não operam as referidas remissões, para estes casos importa pois identificar qual o regime procidemental.

Em matéria de tramitação processual, o art.º 10.º do RJRN2000, apenas vem prever, no seu nº 5, a análise será sempre que necessário precedida de consulta pública. Quanto à competência para a elaboração da AIncA, prevê o nº 3 do art.º 10.º do RJRN2000 que cabe às entidades competentes para a decisão das acções, planos e projectos em causa. Não se encontra estabelecido nenhum prazo para a decisão, ao contrário do que é previsto para os diversos casos abrangidos pela remissão, pelo que coerentemente é também natural que do silêncio da administração não se possa deduzir o deferimento tácito. Por último, resulta de forma inequívoca, embora excepcionável, do art.º 10.º nº 9 do RJRN2000, que a análise, tem força vinculativa, uma vez que dela depende a autorização ou o licenciamento, das actividades abrangidas.

Por último resta-nos referir de forma breve os regimes dos n.ºs 10 e 11 do art.º 10.º, os quais têm sido entendidos, por um lado como uma incoerência dos regimes de avaliação ambiental considerados como um todo, por outro, como um mecanismo de flexibilização da rigidez do regime da AIncA[4], sendo que ambas as realidades se cruzam se atendermos que a flexibilidade resulta de um incoerência e vice-versa.~

 Desconsiderando as diversas leituras que têm sido feitas dos preceitos em análise, referiremos apenas que, embora considerando que as interpretações restritivas, isto é, considerando apenas as situações de DIAs condicionais, não se adequam em primeiro lugar à letra do enunciado normativo e em segundo ao espirito das directivas transposta, em nosso entender, as normas dos n.ºs 10 e 11 do art.º 10.º do RJRN2000, foram de forma tácita parcialmente revogadas, nos casos em que a AIncA opera por remissão para o regime da AIA, pela entrada em vigor das normas que estabelecem o sui generis regime (discricionário?) de atribuição de competência para a emissão da DIA, art.º 16.º nº 7, do DL n.º 151-B/2013, entendido no sentido, de que apenas o Ministro do Ambiente é competente para a emissão de AIA desfavorável, uma vez que caso se admita a vigência das referidas normas a incoerência deixaria de ser apenas do sistemas jurídico, e passaria a ser também de natureza orgânica, devendo em nosso entender o Ministro ao decidir com fundamento no art.º 16.º nº 7 do RAIA, ter em consideração nesta fase os factos ponderativos resultantes do art.º 10.º n.ºs 10 e 11. do RJRN2000

Em suma, atendendo ao carácter residual e secundário da avaliação de incidências ambientais, haverá que concluir pela escassa relevância autónoma da figura, podendo a sua consagração legal se entendida, utilizando a o conceito do filósofo Português José Gil, como um acto de “não inscrição” ou empregando o novel neologismos de significado idêntico, um “inconseguimento” normativo.
 
 

José Miguel de Freitas Toste, nº20876

Bibliografia:

Tiago Antunes, Singularidades de um Regime Ecológico - O regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências ambientais, in No Ano Internacional da Biodiversidade - Contributos para o estudo do Direito da protecção da biodiversidade, coord. de Carla Amado Gomes, 2010, E-book, ICJP.

Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2014




[1] Antunes (2010), p.196
[2] Gomes (2014), p.181 e Antunes (2010), p.199 e ss.
[3] Antunes (2010), p.200
[4] Gomes (2014), p.184

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