domingo, 1 de junho de 2014

Participação Ambiental – Acção Popular na Defesa do Ambiente.


Neste breve exposição teremos como derradeiro objectivo fazer uma análise da acção popular, no caso específico de tutela do bem ambiente. Procuraremos densificar o conceito de legitimidade popular em defesa do ambiente, fazendo uma comparação com o regime cível e administrativo, e densificaremos ainda o conceito de interesses difusos. Da nossa parte, entendemos por oportuno fazer uma abordagem do leque dos sujeitos com legitimidade para proporem acções populares. Por fim, e tendo por base legal a Lei de Participação Procedimental e da Acção Popular, faremos uma análise dos traços que individualizam este regime, dada a sua especialidade.
Relativamente ao princípio da Participação ambiental importa fazer uma breve referência à Convenção de Aarhus de 25 de Junho de 1998, a qual se justificou pela necessidade de construção de um quadro legal internacional com o propósito de defender os interesses públicos na participação ambiental. Aarhus representa um grande desenvolvimento ao nível do direito ambiental internacional impondo directrizes sobre a participação pública nos procedimentos administrativos que tenham impacto no ambiente. Esta convenção teve como objectivo principal proteger o direito de cada indivíduo e das gerações futuras a viver num ambiente que preserve a sua saúde e bem-estar. Para realizar tal desiderato propôs que fossem realizadas intervenções em três domínios, a saber: desenvolvimento do acesso ao público a informação, favorecimento da participação pública em tomada de decisões com impacto significativo no ambiente e alargamento do acesso à justiça.
O direito à participação tem grande relevância no primado do desenvolvimento sustentável, na medida em que possibilita à sociedade praticar a sua cidadania ambiental em cumprimento do seu dever de defesa do ambiente previsto no artigo 66.º, n.º 1 e 2 da CRP.
O direito de participação encontra regulação constitucional no artigo 267.º da CRP, o qual prevê no número 1 que a Administração Pública será estruturada de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática. Para tal a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização e desconcentração administrativas (artigo 267.º, n.º 2 da CRP), sendo que as associações públicas apenas podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas (artigo 267.º, n.º 4 da CRP).
Além de uma referência expressa na nossa Lei Fundamental, a legislação ordinária também faz referência em diversos diplomas ao princípio de participação popular em matéria ambiental.
A lei das Associações de Defesa do Ambiente[1] no seu artigo 4.º, n.º 1 prevê que as associações de defesa do ambiente têm o direito de participar e intervir na definição da política do ambiente e nas grandes linhas de orientação legislativa. Esta lei define, assim, os direitos de participação e intervenção destas associações junto da Administração central, regional e local, mais concretamente o direito de participação e intervenção na definição da política ambiental. Importa ainda fazer referência ao artigo 7.º da lei em abordagem, o qual dispõe que as ditas associações têm legitimidade para accionar as acções necessárias à prevenção ou cessação de
actos ou omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de degradação do ambiente e recorrer contenciosamente dos actos administrativos que violem as disposições legais que, nos termos do artigo 66.º da Constituição da República, protegem o ambiente e a qualidade de vida.
No âmbito deste estudo tem um papel relevante a Lei de Base do Ambiente. [2] As políticas públicas de ambiente estão subordinadas a determinados princípios, dentro dos quais o princípio de participação que implica o envolvimento dos cidadãos nas políticas ambientais conforme dispõe o artigo 4.º, alínea e), da Lei 19/2014. A todos é garantido o direito de intervenção e participação nos procedimentos administrativos relativos ao ambiente (artigo 6.º, n.º 1), em especial o direito de participação dos cidadãos, das associações não -governamentais e dos demais agentes interessados, em matéria de ambiente, na adopção das decisões relativas a procedimentos de autorização ou referentes a actividades que possam ter impactes ambientais significativos, bem como na preparação de planos e programas ambientais (artigo 6.º, n.º 2, alínea a)). A todos é ainda reconhecido o direito de tutela plena e efectiva dos seus direitos e interesses, que se encontram legalmente protegidos em matéria de ambiente, em especial o direito de acção para defesa de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, assim como para o exercício do direito de acção pública e de acção popular (artigo 7.º, n.º 2, alínea a)).
O Código do Procedimento Administrativo eleva o direito de participação à categoria de princípio da participação, devendo os órgãos da Administração Pública assegurara a participação dos particulares, bem como das associações na defesa dos seus interesses (artigo 8.º do CPA). O artigo 53.º, n.º 1 e 2 legitima os cidadãos, titulares de direitos subjectivo ou interesses legalmente protegidos, para a tutela dos danos ambientais provocados pela actuação administrativa.
A protecção do ambiente traduz-se num interesse de preservação de um bem de fruição colectiva que se presta a ser defendido por via de instrumentos de alargamento da legitimidade processual activa.
Do artigo 66.º, n.º 1 da CRP resulta, de forma clara, a atribuição de um direito ao ambiente, e de um complementar dever de defesa do ambiente. Desta norma resulta que qualquer sujeito tem simultaneamente um direito a um ambiente humano, sadio e equilibrado, todavia tem o dever de o preservar. O direito ao ambiente, que é de todos, concretiza-se na faculdade de exigir a terceiros determinadas condutas, activas ou omissivas; já o dever de defesa do ambiente tem um conteúdo mais complexo, dele decorrendo não só a obrigação de não contribuir para a degradação do ambiente, como de igual forma a obrigação de reagir contra qualquer ofensa ao ambiente, quer por meios extrajudiciais como judiciais.
O direito ao ambiente é susceptível, em algumas situações, de uma apropriação individual e de uma utilização em benefício directo e próprio, mas é igualmente possível ser usufruído por qualquer sujeito. Já o dever de defesa do ambiente não incumbe apenas a sujeitos determinados, mas igualmente a todo e qualquer sujeito, mesmo que não seja directamente afectado.
O direito ao ambiente pode configurar-se quer como um direito subjectivo ou interesse legítimo, quer como um interesse difuso. Funciona como interesse difuso quando o direito ao ambiente é perspectivado como a faculdade, reconhecida a todos e a cada um, de reagir contra uma agressão ambiental. Entre estes dois direitos há uma diferença crassa, num a titularidade é individual, no outro é indiferenciada.
Um interesse difuso corresponde a um interesse juridicamente reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros da comunidade ou de um grupo, no entanto, é insusceptível de apropriação individual por qualquer desses membros. Convém fazer referência à circunstância de não serem os interesses difusos interesses públicos, pois não pertence a titularidade a nenhuma entidade ou órgão público; não se identificam com interesses colectivos, na medida em que não pertencem a uma comunidade ou grupo mas a cada um dos membros, e também não são reconduzíveis a interesses individuais pois são interesses qua não podem ser atribuídos em exclusividade a um sujeito, antes pertencem a qualquer um dos membros da comunidade ou grupo. Daqui decorre que os interesses difusos podem classificar-se simultaneamente como interesses não públicos, não colectivos e não individuais. [3]
Estes interesses necessitam de uma tutela judicial, sem a mesma ficariam desprotegidos interesses difusos importantes. A tutela judicial de interesses difusos enquadra-se na garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça (artigo 20.º, n.º1 da CRP), de recurso contencioso contra actos administrativos ilegais e de acesso à justiça administrativa para tutela de direitos ou interesses legalmente protegidos
Segundo o artigo 52.º, n.º 3 da CRP é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e nos termos previstos na lei. Daqui decorre que o sistema português admite quer a class action, em que a legitimidade é conferida a um particular, quer a associação associativa, em que a legitimidade é concedida a uma associação de defesa dos respectivos interesses. O artigo em referência é uma norma imediatamente aplicável, visto que a sua eficácia não fica de forma alguma dependente de uma regulamentação específica. Este resultado advém do acto de o direito ao ambiente ser consagrado como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º da CRP) devendo, por isso, aplicar-se o enunciado do artigo 18.º, n.1 da CRP.
A lei de Participação Procedimental e Acção Popular [4] regulamenta o artigo 52.º, n.º 3 da CRP, prevendo o direito de acção popular. A referida lei define o exercício do direito de participação popular em procedimentos administrativos e a tutela de prevenção, cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no artigo 52.º, n.º 2, alínea b), CRP dentro das quais se encontram as cometidas contra o ambiente (artigo 1.º, n.º 1 da LPPAP). O bem ambiente é um dos interesses especialmente protegidos por este diploma, conforme assim dispõe o n.º 2 do artigo 1.º.
A legitimidade popular é uma extensão da legitimidade processual, consubstanciando-se como um pressuposto processual com a particularidade de dispensar a prova do interesse directo e pessoal. Esta legitimidade não é um meio processual, mas antes um conjunto de especialidades processuais que se inserem nos meios processuais concretamente utilizados pelos autores populares, quer na jurisdição administrativa, quer na jurisdição cível. Esta afirmação decorre do artigo 12.º da LPPAP.
O exercício da acção popular legitima qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras, neste caso, do ambiente, independentemente de terem ou não interesse na demanda (artigo 2.º, n.º 1 da LPPAP). Têm ainda legitimidade popular, as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.
Entendemos que o melhor é fazer uma análise pormenorizada dos sujeitos investidos em legitimidade popular.
Primariamente, em relação aos cidadãos, importa sublinhar que a natureza imaterial e plurilocalizada das utilidades dos bens naturais faz com que qualquer cidadão possa agir em sua defesa, independentemente do contacto que tenha com o suporte corpóreo.
Contrariamente ao que acontece em outros ordenamentos jurídicos[5], o exercício do direito de acesso à justiça investido em legitimidade popular não é um direito exclusivo dos portugueses mas de todos os estrangeiros que em Portugal detectem ameaças a bens ambientais naturais, ou que no estrangeiro detectem igualmente essas ameaças em virtude de fenómenos de poluição transfronteiriça com origem em Portugal.
A condição de exercício da acção popular não é ser eleitor, mas ser pessoa com interesse na qualidade de fruição de bens colectivos. [6] No entanto, há que fazer uma ressalva ao facto de o cidadão que não tenha em dia os seus direitos políticos não poder ser titular do direito procedimental de participação popular. Já aquele que esteja no pleno gozo dos seus direitos políticos pode fazê-lo, mesmo que não tenha qualquer interesse da sua parte.    
Em segundo lugar, relativamente às acções promovidas por associações e fundações é importante frisar a especialidade das atribuições estatutárias enunciadas no artigo 3.º da LPPAP. Assim, constituem requisitos de legitimidade activa a personalidade jurídica, o incluírem de forma expressa nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa, não exercerem qualquer actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais. No caso de a acção extravasar os seus objectivos estatutários, a associação não pode actuar. Na realidade, ela própria se auto-limitou na sua capacidade de actuação.
No que concerne em específico às Associações de Defesa do Ambiente, o artigo 7.º da lei 10/87 que tem como epígrafe Direito de prevenção e controle, estabelece que as associações de defesa do ambiente têm legitimidade para propor acções necessárias à prevenção ou cessação de actos ou omissões de entidades públicas ou privadas que constituam factor de degradação do ambiente; recorrer contenciosamente dos actos administrativos que violem as disposições legais que, nos termos do artigo 66.º da Constituição da República, protegem o ambiente e a qualidade de vida, entre outras.
Por último, trata-se do caso das autarquias, leia-se municípios e freguesias. Todavia, não nos podemos esquecer que estas entidades estão constitucional e legalmente comprometidas na tarefa de protecção do ambiente, o que lhes confere competência própria de actuação nesta sede, independentemente do recurso aos tribunais.
Para CARLA AMADO GOMES, a lei parece querer reportar-se ao fenómeno da representação sem mandato análogo subjacente ao mecanismo de tutela de interesses individuais do artigo 15.º da LPPAP.
Não obstante não ser feita qualquer referência no leque de sujeitos com legitimidade na LPPAP, deve referir-se que além da legitimidade difusa que é concedida aos sujeitos particulares e às associações, na protecção jurisdicional do ambiente, ao Ministério Público está igualmente reservada uma importante função. Situação que é difícil compreender, porque quer a lei civil, quer o artigo 9.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos conferem legitimidade ao Ministério Público para propor e intervir na defesa do ambiente. Esta particularidade é ainda mais difícil de compreender, quando a nível jurisprudencial um dos casos mais prolíferos resultou da iniciativa do Ministério Público. [7] A LPPAP faz apenas referência à legitimidade substitutiva dos actores populares em caso de desistência da lide (artigo 16.º, n.º 3 da LPPAP).
No entender de CARLA AMADO GOMES a exclusão do leque de entidades enunciadas no artigo 2.º da LPPAP pode dever-se ao facto de esta lei ser um regime de alargamento da legitimidade procedimental. A realidade é que o MP está presente, nos locais especialmente contenciosos, como detentor da acção pública. A actuação desta entidade vem a traduzir-se numa actuação duplamente qualificada, na medida em que age quer na defesa da legalidade objectiva, como na defesa da qualidade do bem ambiente.
A LPPAP não regula apenas a legitimidade popular, mas igualmente o instituto da acção de grupo, filiada nas class action americana, em que cada membro de um grupo de pessoas tem o direito de litigar em representação de todas elas, mesmo sem obter o seu prévio consentimento.
De facto, as verdadeiras especialidades do regime da acção popular constam dos artigos 13.º, 17.º, 18.º e 20.º da LPPAP.
O artigo 13.º visa desincentivar os autores populares a proporem acções com fins puramente dilatórios. Este regime especial decorre também da circunstância do acentuado facilitismo do acesso à justiça, na medida em que do exercício da acção popular não são exigidos preparos e custas (artigo 20.º da LPPAP). Sendo assim, a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o MP ou depois de feitas determinadas averiguações que o julgador tenha por apropriadas. O juiz vê nesta sede acrescidos os seus poderes de saneamento liminar em acções promovidas por autores populares.
Do artigo 17.º da LPPAP decorre de forma inequívoca a natureza pública deste tipo de processos. Na verdade, o juiz não se encontra balizado pelo princípio da imparcialidade, podendo, ele próprio tomar as diligências que entenda por oportunas. Ao juiz cabe a iniciativa própria em matéria de recolha de provas, sem vinculação à iniciativa das partes. Desta forma, o juiz está vinculado ao pedido, mas não aos elementos da prova carreados, que por sua iniciativa podem ser acrescidos.
 Em relação ao artigo 18.º também dele decorre traços de especialidade do regime da acção popular. O juiz imprimirá, oficiosamente, no caso de entender necessário para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, efeito suspensivo ao recurso, independentemente de a lei processual aplicável o prever ou não. Este artigo tem como finalidade salvaguardar o efeito útil de uma decisão de provimento do pedido do autor popular atendendo à natureza frágil do objecto subjacente ao litígio.
 Finalmente o artigo 20.º é uma forma de incentivo à promoção de acções de defesa do ambiente pelos autores populares, dispensando-os de preparos e do pagamento de custas em caso de procedência parcial do pedido. Em caso de decaimento total, o montante a liquidar é ainda assim simbólico (artigo 20.º, n.º 3 da LPPAP).
Importa por fim, fazer uma breve referência ao facto de inexistir uma providência cautelar específica da tutela contenciosa ambiental, movendo-se os autores populares pelas providências cautelares do contencioso administrativo e contencioso cível. No caso de especial urgência há a possibilidade de decretamento provisório da providência prevista no artigo 131.º do CPTA. Deve também assinalar-se o artigo 120.º, n.º 1 alínea a) do CPTA que apela ao critério da evidência, assim perante uma violação manifesta das normas de protecção jusambiental o juiz concederia a suspensão do acto autorizativo, sem ponderação do n.º 2 do artigo em apreço.

 

Bibliografia:
CARILA, Bleina Queirós, Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por danos ambientais: um olhar à luz do Direito À informação e do Direito à participação. Mestrado em ciências jurídico políticas 2008/2009;

GOMES, Carla Amado; Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, A acção Pública e Acção Popular na Defesa do Ambiente – Reflexões Breves, 2010, Almedina;
SERRANO, Thiago Pereira Diniz, Direito à informação e Participação no procedimento de avaliação de impacto ambiental: perspectiva Luso-Brasileira. Mestrado em Ciências Jurídico Políticas, 2009;

SOUSA, Miguel Teixeira de; Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente, in Direito do Ambiente, INA, 1994.



[1] Lei n.º 10/87, de 4 de Abril.
[2] Lei n.º 19/2014, de 14 de Abril.
[3] Para Cappelletti são interesses à procura de autor.
[4] Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
[5] No Brasil a Lei 4.717, de 29 de Junho de 1965 exige a prova da cidadania como condição de exercício da acção popular.
[6] Segundo Acórdão do STJ de 25 de Março de 2004 e do Tribunal Central Administrativo do Sul de 13 de Janeiro de 2005 é condição necessária para o investimento do sujeito em acção popular ser eleitor.
[7] Caso da Cegonhas Brancas decidido pelo Tribunal Judicial de Coruche no ano de 1990. Processo 278/89, de 23 de Fevereiro.


Ana  Cristina Teixeira Lopes, n.º 21474

Sem comentários:

Enviar um comentário