“Se estão a
ler isto, é porque realmente vale a pena pôr sempre uma frase bonita, de um
Autor de renome, como introdução de um post, qual epitáfio de um túmulo. Como não tive paciência para ir à procura,
ficamos assim. Já é melhor do que nada”
- Afonso Brás.
I.
Introdução
A responsabilidade civil ambiental assume, hoje, uma
inegável importância ao nível do Direito do Ambiente. Dessa importância são
demonstrativos os diplomas legislativos que, uns mais do que outros, versam
sobre esse tipo de responsabilidade e contribuem para a sua evolução dogmática
numa área do Direito cada vez mais relevante. Falamos, neste caso, da Lei de
Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril – doravante, LBA), da Lei da
Ação Popular (Lei 83/95, de 31 de Agosto) e, last but no the least, do próprio Regime da Responsabilidade por
Danos Ambientais, constante do Decreto-Lei 147/2008, de 29 de Julho.
Embora tivesse especial interesse analisar cada um destes
diplomas, a análise deste post vai-se cingir a um outro aspecto relevante: a
possibilidade de, ao Direito do Ambiente, se aplicar diretamente o regime da
responsabilidade civil plasmado no Código Civil (CC), nomeadamente nos seus
artigos 483º e seguintes. Será que é possível isso acontecer? E sendo a
resposta positiva, fará sentido continuar a aplicar-se, mesmo depois de já
estarem publicadas tantas leis que contribuem para a sua evolução, menorizando,
de certa forma, o regime do CC? Eis o que importa responder.
II.
A aplicação do regime da responsabilidade civil
Como bem refere o Professor Menezes Leitão, falar de responsabilidade civil ao mesmo
tempo que se fala de Direito do Ambiente pode ser uma “contradição entre
termos” [1].
Efetivamente, se olharmos para o enunciado normativo do artigo 483º do CC,
verificamos que a responsabilidade civil exige a “violação de direitos”
[subjetivos] (ou de normas de proteção) . Ora, sabendo já nós que o direito ao
ambiente não se configura como um direito subjetivo, então, consequentemente,
seria impossível admitir a tutela do ambiente pelo instituto da
responsabilidade civil. No entanto, esta conclusão pode rapidamente ser
refutada: se é certo que o direito ao ambiente não pode ser configurado como um
direito subjetivo stricto sensu,
também não deixa de ser verdade que o ambiente (ou melhor, que os recursos
ligados ao direito ao ambiente) implicam a afetação de um bem (ou de bens) às
necessidades de pessoas individualmente consideradas. Se é assim, então é
inegável a natureza do ambiente enquanto bem jurídico digno de tutela jurídica.
Portanto, e fruto deste entendimento, o ambiente enquanto bem jurídico abre
caminho para o reconhecimento da ilicitude da lesão ambiental e,
simultaneamente, “para a configuração
como dano da frustração de quaisquer utilidades proporcionadas pelo ambiente”
[2].
Ultrapassado este primeiro obstáculo, cabe agora
verificar se é possível recorrer, na íntegra, aos pressupostos de
responsabilidade civil dos artigos 483º e seguintes do CC quando falamos de responsabilidade civil
ambiental. Como bem sabemos de Direito das Obrigações, a norma do artigo 483º
do CC estabelece um princípio genérico de responsabilidade subjetiva, sendo
que, para que se possa constituir alguém na obrigação de reparar os danos
causados por uma atuação lesiva são necessários os seguintes pressupostos [3]:
1.
A existência
de um facto voluntário;
2.
A ilicitude,
entendida como a violação de direitos subjetivos ou de normas de proteção
destinadas a proteger interesses alheios;
3.
A culpa,
entendida como a especial censurabilidade da conduta do agente;
4.
O dano;
5.
O nexo de
causalidade entre o facto e o dano.
Analisemos cada um destes
pressupostos.
a)
O facto
voluntário
O primeiro pressuposto da responsabilidade é o facto
voluntário. Na verdade, tratando-se de uma situação de responsabilidade civil
subjetiva, como a que está vertida nesta norma, ela nunca poderia ser
estabelecida sem existir um comportamento dominável pela vontade, que possa ser
imputado a um ser humano e visto como expressão da conduta de um sujeito responsável
[4].
Assim sendo, neste pressuposto exige-se que exista uma conduta que possa ser
imputada ao agente em virtude de estar sob o controlo da sua vontade. Desta
forma, este pressuposto não levante grandes problemas.
b)
A
ilicitude
Já há pouco havíamos referido que o ambiente não pode ser
entendido como um direito subjetivo stricto
sensu, no sentido de que uma violação no Ambiente não consubstancia uma
violação (particular) de um direito subjetivo ao ambiente. À partida isso
poderia levar, desde logo, a excluir a aplicação do regime da responsabilidade
civil dos artigos 483º e seguintes do CC, na medida em que estamos perante um
regime puramente subjetivo de responsabilidade, isto é, perante uma
responsabilidade civil subjetiva. No entanto, verificamos que essa conclusão
estava errada, na medida em que o ambiente, de
per se, constitui um bem jurídico, e, como tal, quando violado, abre
caminho para o reconhecimento de uma ilicitude da lesão ambiental: assim,
quanto a este pressuposto, mais do que a lesão de direitos subjetivos alheios
(isto é, de direitos subjetivos que não o direito subjetivo ao ambiente – por
exemplo, fruto de uma lesão ambiental alguém é lesado na sua integridade
física), estará essencialmente em causa a violação de normas de proteção destinadas
a proteger interesses alheios. Trata-se de normas que, não obstante serem
dirigidas à tutela de interesses particulares, não atribuem aos titulares
desses interesses um verdadeiro direito subjetivo, por não lhes atribuírem em
exclusivo o aproveitamento de um bem. Este tipo de normas proliferam em Direito
do Ambiente: a título de exemplo, podemos falar daquelas que as condições
especiais dos materiais utilizados e libertados por certo tipo de fábricas que
desenvolvem atividades potencialmente danosas ao Ambiente.
c)
A culpa
Em termos simplistas, a culpa é aqui entendida como a
especial censurabilidade da conduta do agente. Ou seja, é o juízo de censura
que ao agente é dirigido pelo facto de ele ter adotado a conduta que adotou,
quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adotar uma conduta
diferente. Deve portanto ser entendido em sentido normativo, como a omissão da
diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a
lei impõe. Ora, porque na maior parte dos casos em que se fala de
responsabilidade civil ambiental (e de lesão ambiental) estão em causa
atividades perigosas, parece ser de acompanhar, de novo, o Professor Menezes Leitão[5]:
a “probatio diabólica da culpa
relativamente aos casos de lesão ambiental, parece-nos poder ser dispensada
através do recurso à presunção do artigo 493º, n.º2 do Código Civil, que
considera que quem exerce uma atividade perigosa se presume responsável pelos
danos verificados, excepto se demonstrar que tomou todas as providências exigidas
pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Assim, caberá àquele que
exerce essa mesma atividade perigosa ilidir a referida presunção, e,
consequentemente, eximir-se da culpa.
d)
O dano
O dano é, conjuntamente com o nexo de causalidade, um dos
grandes problemas relativamente a estes pressupostos. Quanto ao pressuposto que
agora estamos a analisar, é usual distinguir-se entre danos ambientais e danos
ecológicos: os primeiros seriam aqueles danos no meio ambiente que têm
repercussões na esfera patrimonial de um particular. Compreende os danos
provocados a bens jurídicos concretos através de emissões particulares ou
através de um conjunto de emissões emanadas de uma fonte emissora[6];
por sua vez, os segundos seriam lesões internas causadas ao sistema ecológico
natural, sem que tenham sido violados direitos individuais. É uma lesão num
elemento natural, ou seja, é uma lesão causada a um recurso natural,
susceptível de causar uma afetação significativa do equilíbrio do bem jurídico
ambiente ou património natural e da sua interação.
Quando falamos de danos ecológicos, precisamente por
serem danos sem lesado individual, entende o Professor Gomes Canotilho que não seria possível recorrer “aos mecanismos de responsabilidade
individual, uma vez que estando em causa o interesse global defesa do ambiente,
só o direito público poderia intervir” [7].
Assim, haveria que aplicar soluções baseadas no princípio do poluidor-pagador,
como a criação de taxas ou impostos ecológicos, ou numa ideia de repartição
comunitária dos danos, como na criação de fundos coletivos de indemnização. No
entanto, este entendimento não é de perfilhar. Com efeito, a partir do momento
em que o ambiente aparece, tal como dissemos, como um bem jurídico protegido,
as utilidades que ele proporciona tornam-se objeto de tutela jurídica. Desta
forma, qualquer lesão ambiental satisfaz os requisitos para a configuração do
conceito de dano. E o problema da inexistência de lesados individuais pode ser
ultrapassado à semelhança daquilo que já hoje acontece nos EUA, e que passa
pela atribuição da titularidade da indemnização a coletividades ou a entes
públicos, ou, como há pouco referimos, pela criação de um fundo com esse fim.
Já no dano ambiental, ao invés, verificam-se lesões
individuais. O problema que à partida se poderia colocar poderia ser aquele
relacionado com a determinação do quantum
indemnizatório, aquando da ocorrência deste tipo de lesões. Para aquilo que nos
interessa, importa ter em conta o próprio artigo 562º do CC, que atribui
primazia à reconstituição natural, sendo que já foi objeto de aplicação na
famosa sentença de Coruche, de 23/02/1990, em que, perante a destruição de
árvores onde nidificavam cegonhas, o juiz ordenou a elaboração de construções
que permitissem essa nidificação. Além do mais, e novamente acompanhando o
Professor Menezes Leitão, o facto
de haver uma impossibilidade de quantificar em termos exatos os prejuízos
causados pela lesão ambiental, “não
impede os tribunais de atribuir indemnização pecuniária por danos ambientais,
uma vez que o art.º 566º, nº 3 do CC admite claramente que, quando não puder
ser fixado o montante exacto dos danos, o Tribunal julgue equitativamente
dentro dos limites que tiver por provados” [8]
e)
O nexo de
causalidade
Por último, resta-nos falar do nexo de causalidade entre
o facto ilícito e o dano. A doutrina que sobre esta problemática se pronuncia,
tende a resolver este pressuposto adotando a teoria do escopo da norma violada,
imputando ao agente por intermédio da conditio
sine qua non os danos correspondentes às posições que são garantidas pelas
normas violadas. No entanto, a demonstração dessa conditio raramente é suscetível de ocorrer em sede ambiental, já
que a prova da causalidade é normalmente limitada a hipóteses puramente
estatísticas, ocorrendo ainda situações de causalidade alternativa, em que
apenas se sabe que os autores da lesão estarão entre os vários agentes, mas não
se sabe em concreto qual deles causou o dano.
Para este pressuposto interessa-nos especialmente o art.º
5º do Decreto-Lei nº 147/2008, que versa, precisamente, sobre o nexo de
causalidade, podendo servir de fonte de inspiração para a resolução dos
problemas que são suscitados no âmbito da norma do artigo 483º CC. Refere o
artigo que:
“A apreciação da prova do nexo de causalidade assenta num critério de
verosimilhança e de probabilidade de o facto danoso ser apto a produzir a lesão
verificada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e considerando,
em especial, o grau de risco e de perigo e a normalidade da ação lesiva, a possibilidade
de prova científica e o cumprimento, ou não, dos deveres de proteção”.
Seguindo aqui o
entendimento de Ana Perestrelo de
Oliveira[9],
e dissecando este artigo, chegamos às seguintes conclusões: em primeiro lugar,
o dano é objetivamente imputável ao agente quando este criou/aumentou o risco
da verificação do dano e esse risco se materializou no resultado lesivo; de
acordo com as regras gerais, o lesado teria de fazer a prova do nexo causal,
isto é, o juiz teria de ficar certo da criação/aumento do risco e da
materialização do risco no resultado lesivo; à luz deste artigo, basta ao
lesado provar que é provável a instalação ter criado ou aumentado o risco de
verificação do dano, presumindo-se a materialização desse risco no resultado;
por isso demonstra que uma instalação daquele tipo é abstratamente idónea ou
apta a produzir aquele tipo de dano; e o réu pode demonstrar que não é provável
ter criado o risco, mas também pode provar que, apesar de ser provável, não foi
aquele risco que se materializou no evento lesivo.
Apesar de ser um entendimento pensado para a Lei da Responsabilidade Ambiental, não me
parece que não possa ser transposto para o regime vertido nos artigos 483º e
seguintes do CC. Assim, adoptando uma espécie de teoria do risco, haveria nexo
de causalidade entre o facto ilícito e o dano quando este fosse objetivamente
imputável ao agente, na medida em que ele tenha criado/aumentado o risco de
verificação do dano e esse risco se tenha materializado no resultado lesivo.
Assim, caberia ao lesado fazer a prova desse nexo causal, podendo o réu
demonstrado que não é provável ter criado aquele risco, ou que não foi aquele
risco que se materializou no resultado.
III.
Conclusão
Chegados a este ponto, e depois de verificado como os
pressupostos da responsabilidade civil podem ser adaptados no sentido de se
poder falar de uma responsabilidade civil ambiental (embora uns com mais
dificuldades do que outros), é de concluir pela importância que hoje este
regime tem no Direito do Ambiente. Aliás, não terá sido por acaso que nos
últimos anos se tenham vindo a consagrar sucessivos regimes de responsabilidade
ambiental. E também não será por acaso que esses regimes façam questão de
frisar que é importante não esquecer os artigos 483º e seguintes do CC (veja-se,
entre outros, o artigo 40º, nº4 da LBA). É que, sendo o berço de toda a
responsabilidade civil, foi daqui que o legislador tirou inspiração para a
feitura desses sucessivos diplomas legislativos atinentes à responsabilidade
ambiental. E no fundo, nunca nos podemos esquecer daqueles que nos deram à luz.
Afonso Brás
Referências bibliográficas:
-
OLIVEIRA, Ana
Perestrelo de, A Prova do Nexo de
Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental”, in Actas
do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa,
ICJP;
-
AMADO GOMES,
Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Editora AAFDL, 2014;
-
GOMES
CANOTILHO, José Joaquim, Responsabilidade
Civil por Danos Ecológicos: Da reparação do Dano através da Restauração Natural, Coimbra:
Coimbra Editora, 1998;
-
MENEZES LEITÃO, Luís de, :
-
A
Responsabilidade Civil Por Danos Causados Ao Ambiente, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil
por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP;
-
Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da
Constituição das Obrigações,
Coimbra: Edições Almedina, 2010.
[1] Cfr. Menezes Leitão, A Responsabilidade Civil Por Danos Causados Ao Ambiente, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil
por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP, pp-21-41, p. 21.
[3] Cfr., Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das
Obrigações,
Coimbra: Edições Almedina, 2010, pp. 295 e ss.
[6] Cfr.,
entre outros, aa definições que são dadas pelo Acórdão do TCA – Sul, de 7 de
Fevereiro de 2013 (proc. 05849/10).
[7] Cfr., Gomes Canotilho, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos: Da reparação do Dano
através da Restauração Natural, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 403.
[9] Cfr.,
Ana Perestrelo de Oliveira, “A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da
Responsabilidade Ambiental”, in Actas do
Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa,
ICJP, pp-172-193, em especial, pp.190-191.
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