domingo, 1 de junho de 2014

Breves notas sobre a Responsabilidade Civil Ambiental




Se estão a ler isto, é porque realmente vale a pena pôr sempre uma frase bonita, de um Autor de renome, como introdução de um post, qual epitáfio de um túmulo. Como não tive paciência para ir à procura, ficamos assim. Já é melhor do que nada”

 - Afonso Brás.


I.              Introdução

            A responsabilidade civil ambiental assume, hoje, uma inegável importância ao nível do Direito do Ambiente. Dessa importância são demonstrativos os diplomas legislativos que, uns mais do que outros, versam sobre esse tipo de responsabilidade e contribuem para a sua evolução dogmática numa área do Direito cada vez mais relevante. Falamos, neste caso, da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril – doravante, LBA), da Lei da Ação Popular (Lei 83/95, de 31 de Agosto) e, last but no the least, do próprio Regime da Responsabilidade por Danos Ambientais, constante do Decreto-Lei 147/2008, de 29 de Julho.
            Embora tivesse especial interesse analisar cada um destes diplomas, a análise deste post vai-se cingir a um outro aspecto relevante: a possibilidade de, ao Direito do Ambiente, se aplicar diretamente o regime da responsabilidade civil plasmado no Código Civil (CC), nomeadamente nos seus artigos 483º e seguintes. Será que é possível isso acontecer? E sendo a resposta positiva, fará sentido continuar a aplicar-se, mesmo depois de já estarem publicadas tantas leis que contribuem para a sua evolução, menorizando, de certa forma, o regime do CC? Eis o que importa responder.

II.            A aplicação do regime da responsabilidade civil

            Como bem refere o Professor Menezes Leitão, falar de responsabilidade civil ao mesmo tempo que se fala de Direito do Ambiente pode ser uma “contradição entre termos” [1]. Efetivamente, se olharmos para o enunciado normativo do artigo 483º do CC, verificamos que a responsabilidade civil exige a “violação de direitos” [subjetivos] (ou de normas de proteção) . Ora, sabendo já nós que o direito ao ambiente não se configura como um direito subjetivo, então, consequentemente, seria impossível admitir a tutela do ambiente pelo instituto da responsabilidade civil. No entanto, esta conclusão pode rapidamente ser refutada: se é certo que o direito ao ambiente não pode ser configurado como um direito subjetivo stricto sensu, também não deixa de ser verdade que o ambiente (ou melhor, que os recursos ligados ao direito ao ambiente) implicam a afetação de um bem (ou de bens) às necessidades de pessoas individualmente consideradas. Se é assim, então é inegável a natureza do ambiente enquanto bem jurídico digno de tutela jurídica. Portanto, e fruto deste entendimento, o ambiente enquanto bem jurídico abre caminho para o reconhecimento da ilicitude da lesão ambiental e, simultaneamente, “para a configuração como dano da frustração de quaisquer utilidades proporcionadas pelo ambiente[2].
            Ultrapassado este primeiro obstáculo, cabe agora verificar se é possível recorrer, na íntegra, aos pressupostos de responsabilidade civil dos artigos 483º e seguintes  do CC quando falamos de responsabilidade civil ambiental. Como bem sabemos de Direito das Obrigações, a norma do artigo 483º do CC estabelece um princípio genérico de responsabilidade subjetiva, sendo que, para que se possa constituir alguém na obrigação de reparar os danos causados por uma atuação lesiva são necessários os seguintes pressupostos [3]:

1.     A existência de um facto voluntário;
2.     A ilicitude, entendida como a violação de direitos subjetivos ou de normas de proteção destinadas a proteger interesses alheios;
3.     A culpa, entendida como a especial censurabilidade da conduta do agente;
4.     O dano;
5.     O nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Analisemos cada um destes pressupostos.

a)    O facto voluntário
            O primeiro pressuposto da responsabilidade é o facto voluntário. Na verdade, tratando-se de uma situação de responsabilidade civil subjetiva, como a que está vertida nesta norma, ela nunca poderia ser estabelecida sem existir um comportamento dominável pela vontade, que possa ser imputado a um ser humano e visto como expressão da conduta de um sujeito responsável [4]. Assim sendo, neste pressuposto exige-se que exista uma conduta que possa ser imputada ao agente em virtude de estar sob o controlo da sua vontade. Desta forma, este pressuposto não levante grandes problemas.



b)    A ilicitude
            Já há pouco havíamos referido que o ambiente não pode ser entendido como um direito subjetivo stricto sensu, no sentido de que uma violação no Ambiente não consubstancia uma violação (particular) de um direito subjetivo ao ambiente. À partida isso poderia levar, desde logo, a excluir a aplicação do regime da responsabilidade civil dos artigos 483º e seguintes do CC, na medida em que estamos perante um regime puramente subjetivo de responsabilidade, isto é, perante uma responsabilidade civil subjetiva. No entanto, verificamos que essa conclusão estava errada, na medida em que o ambiente, de per se, constitui um bem jurídico, e, como tal, quando violado, abre caminho para o reconhecimento de uma ilicitude da lesão ambiental: assim, quanto a este pressuposto, mais do que a lesão de direitos subjetivos alheios (isto é, de direitos subjetivos que não o direito subjetivo ao ambiente – por exemplo, fruto de uma lesão ambiental alguém é lesado na sua integridade física), estará essencialmente em causa a violação de normas de proteção destinadas a proteger interesses alheios. Trata-se de normas que, não obstante serem dirigidas à tutela de interesses particulares, não atribuem aos titulares desses interesses um verdadeiro direito subjetivo, por não lhes atribuírem em exclusivo o aproveitamento de um bem. Este tipo de normas proliferam em Direito do Ambiente: a título de exemplo, podemos falar daquelas que as condições especiais dos materiais utilizados e libertados por certo tipo de fábricas que desenvolvem atividades potencialmente danosas ao Ambiente.

c)     A culpa
            Em termos simplistas, a culpa é aqui entendida como a especial censurabilidade da conduta do agente. Ou seja, é o juízo de censura que ao agente é dirigido pelo facto de ele ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adotar uma conduta diferente. Deve portanto ser entendido em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe. Ora, porque na maior parte dos casos em que se fala de responsabilidade civil ambiental (e de lesão ambiental) estão em causa atividades perigosas, parece ser de acompanhar, de novo, o Professor Menezes Leitão[5]: a “probatio diabólica da culpa relativamente aos casos de lesão ambiental, parece-nos poder ser dispensada através do recurso à presunção do artigo 493º, n.º2 do Código Civil, que considera que quem exerce uma atividade perigosa se presume responsável pelos danos verificados, excepto se demonstrar que tomou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Assim, caberá àquele que exerce essa mesma atividade perigosa ilidir a referida presunção, e, consequentemente, eximir-se da culpa.

d)    O dano
            O dano é, conjuntamente com o nexo de causalidade, um dos grandes problemas relativamente a estes pressupostos. Quanto ao pressuposto que agora estamos a analisar, é usual distinguir-se entre danos ambientais e danos ecológicos: os primeiros seriam aqueles danos no meio ambiente que têm repercussões na esfera patrimonial de um particular. Compreende os danos provocados a bens jurídicos concretos através de emissões particulares ou através de um conjunto de emissões emanadas de uma fonte emissora[6]; por sua vez, os segundos seriam lesões internas causadas ao sistema ecológico natural, sem que tenham sido violados direitos individuais. É uma lesão num elemento natural, ou seja, é uma lesão causada a um recurso natural, susceptível de causar uma afetação significativa do equilíbrio do bem jurídico ambiente ou património natural e da sua interação.
            Quando falamos de danos ecológicos, precisamente por serem danos sem lesado individual, entende o Professor Gomes Canotilho que não seria possível recorrer “aos mecanismos de responsabilidade individual, uma vez que estando em causa o interesse global defesa do ambiente, só o direito público poderia intervir[7]. Assim, haveria que aplicar soluções baseadas no princípio do poluidor-pagador, como a criação de taxas ou impostos ecológicos, ou numa ideia de repartição comunitária dos danos, como na criação de fundos coletivos de indemnização. No entanto, este entendimento não é de perfilhar. Com efeito, a partir do momento em que o ambiente aparece, tal como dissemos, como um bem jurídico protegido, as utilidades que ele proporciona tornam-se objeto de tutela jurídica. Desta forma, qualquer lesão ambiental satisfaz os requisitos para a configuração do conceito de dano. E o problema da inexistência de lesados individuais pode ser ultrapassado à semelhança daquilo que já hoje acontece nos EUA, e que passa pela atribuição da titularidade da indemnização a coletividades ou a entes públicos, ou, como há pouco referimos, pela criação de um fundo com esse fim.
            Já no dano ambiental, ao invés, verificam-se lesões individuais. O problema que à partida se poderia colocar poderia ser aquele relacionado com a determinação do quantum indemnizatório, aquando da ocorrência deste tipo de lesões. Para aquilo que nos interessa, importa ter em conta o próprio artigo 562º do CC, que atribui primazia à reconstituição natural, sendo que já foi objeto de aplicação na famosa sentença de Coruche, de 23/02/1990, em que, perante a destruição de árvores onde nidificavam cegonhas, o juiz ordenou a elaboração de construções que permitissem essa nidificação. Além do mais, e novamente acompanhando o Professor Menezes Leitão, o facto de haver uma impossibilidade de quantificar em termos exatos os prejuízos causados pela lesão ambiental, “não impede os tribunais de atribuir indemnização pecuniária por danos ambientais, uma vez que o art.º 566º, nº 3 do CC admite claramente que, quando não puder ser fixado o montante exacto dos danos, o Tribunal julgue equitativamente dentro dos limites que tiver por provados[8]

e)     O nexo de causalidade
            Por último, resta-nos falar do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. A doutrina que sobre esta problemática se pronuncia, tende a resolver este pressuposto adotando a teoria do escopo da norma violada, imputando ao agente por intermédio da conditio sine qua non os danos correspondentes às posições que são garantidas pelas normas violadas. No entanto, a demonstração dessa conditio raramente é suscetível de ocorrer em sede ambiental, já que a prova da causalidade é normalmente limitada a hipóteses puramente estatísticas, ocorrendo ainda situações de causalidade alternativa, em que apenas se sabe que os autores da lesão estarão entre os vários agentes, mas não se sabe em concreto qual deles causou o dano.
            Para este pressuposto interessa-nos especialmente o art.º 5º do Decreto-Lei nº 147/2008, que versa, precisamente, sobre o nexo de causalidade, podendo servir de fonte de inspiração para a resolução dos problemas que são suscitados no âmbito da norma do artigo 483º CC. Refere o artigo que:

A apreciação da prova do nexo de causalidade assenta num critério de verosimilhança e de probabilidade de o facto danoso ser apto a produzir a lesão verificada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e considerando, em especial, o grau de risco e de perigo e a normalidade da ação lesiva, a possibilidade de prova científica e o cumprimento, ou não, dos deveres de proteção”.

Seguindo aqui o entendimento de Ana Perestrelo de Oliveira[9], e dissecando este artigo, chegamos às seguintes conclusões: em primeiro lugar, o dano é objetivamente imputável ao agente quando este criou/aumentou o risco da verificação do dano e esse risco se materializou no resultado lesivo; de acordo com as regras gerais, o lesado teria de fazer a prova do nexo causal, isto é, o juiz teria de ficar certo da criação/aumento do risco e da materialização do risco no resultado lesivo; à luz deste artigo, basta ao lesado provar que é provável a instalação ter criado ou aumentado o risco de verificação do dano, presumindo-se a materialização desse risco no resultado; por isso demonstra que uma instalação daquele tipo é abstratamente idónea ou apta a produzir aquele tipo de dano; e o réu pode demonstrar que não é provável ter criado o risco, mas também pode provar que, apesar de ser provável, não foi aquele risco que se materializou no evento lesivo.
            Apesar de ser um entendimento pensado para  a Lei da Responsabilidade Ambiental, não me parece que não possa ser transposto para o regime vertido nos artigos 483º e seguintes do CC. Assim, adoptando uma espécie de teoria do risco, haveria nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano quando este fosse objetivamente imputável ao agente, na medida em que ele tenha criado/aumentado o risco de verificação do dano e esse risco se tenha materializado no resultado lesivo. Assim, caberia ao lesado fazer a prova desse nexo causal, podendo o réu demonstrado que não é provável ter criado aquele risco, ou que não foi aquele risco que se materializou no resultado.

III.         Conclusão

            Chegados a este ponto, e depois de verificado como os pressupostos da responsabilidade civil podem ser adaptados no sentido de se poder falar de uma responsabilidade civil ambiental (embora uns com mais dificuldades do que outros), é de concluir pela importância que hoje este regime tem no Direito do Ambiente. Aliás, não terá sido por acaso que nos últimos anos se tenham vindo a consagrar sucessivos regimes de responsabilidade ambiental. E também não será por acaso que esses regimes façam questão de frisar que é importante não esquecer os artigos 483º e seguintes do CC (veja-se, entre outros, o artigo 40º, nº4 da LBA). É que, sendo o berço de toda a responsabilidade civil, foi daqui que o legislador tirou inspiração para a feitura desses sucessivos diplomas legislativos atinentes à responsabilidade ambiental. E no fundo, nunca nos podemos esquecer daqueles que nos deram à luz.

                                                                                                            Afonso Brás

Referências bibliográficas:

-       OLIVEIRA, Ana Perestrelo de, A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental”, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP;
-       AMADO GOMES, Carla, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Editora AAFDL, 2014;
-       GOMES CANOTILHO, José Joaquim, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos: Da reparação do Dano através da Restauração Natural, Coimbra: Coimbra Editora, 1998;
-       MENEZES LEITÃO, Luís de, :
-       A Responsabilidade Civil Por Danos Causados Ao Ambiente, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP;
-       Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, Coimbra: Edições Almedina, 2010.




[1] Cfr. Menezes Leitão, A Responsabilidade Civil Por Danos Causados Ao Ambiente, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP, pp-21-41, p. 21.  
[2] Idem, p. 22.
[3] Cfr., Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, Coimbra: Edições Almedina, 2010, pp. 295 e ss.
[4] Idem, pp. 296-297.
[5] Ibidem, p. 26.
[6] Cfr., entre outros, aa definições que são dadas pelo Acórdão do TCA – Sul, de 7 de Fevereiro de 2013 (proc. 05849/10).
[7] Cfr., Gomes Canotilho, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos: Da reparação do Dano através da Restauração Natural, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 403.
[8] Cfr., Menezes Leitão, ob. cit., p. 27.
[9] Cfr., Ana Perestrelo de Oliveira, “A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental”, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, Lisboa, ICJP, pp-172-193, em especial, pp.190-191.

Sem comentários:

Enviar um comentário