domingo, 1 de junho de 2014

Contra-ordenações ambientais


O ambiente, enquanto bem jurídico impessoal e, na vertente de bem colectivo, deve ser tutelado.
Sendo o direito do ambiente um ramo voltado para a protecção da integridade das componentes ambientais naturais, é primordial evitar impactos que se possam converter em danos ecológicos. Conclui-se pela necessidade de garantir uma certa ordem e organização social, o bem-estar e qualidade de vida dos cidadãos.

O Direito Sancionatório do Ambiente é um fenómeno muito recente que possibilita a reacção punitiva da ordem jurídica contra agressões ambientais.

A tutela contra-ordenacional traduz-se numa realidade principalmente pecuniária, com a sua vantagem de celeridade, assente na necessidade de prevenção geral e especial. Permite a aplicação de sanções por mero incumprimento de deveres legais de protecção, prescindindo do dano. Por outras palavras, uma contra-ordenação não pressupõe um dano, por duas razões:
1)   basta a mera violação de deveres de prevenção do risco para que exista ilícito administrativo;
2)    a conduta típica situa-se à margem dessa factualidade.

A tutela sancionatória possui vantagens, nomeadamente:
1)   maior celeridade e eficiência na punição do infractor ambiental;
2)   tanto responsabiliza os indivíduos como as pessoas colectivas;
3)   salvaguarda a autonomia do Direito Penal, já que não necessita de estar subalternizado às estatuições das entidades administrativas.
   Todavia, também há desvantagens. Assim, contra a tutela sancionatória ambiental efectuada por via administrativa, temos os seguintes argumentos:
1)   diminuição das garantias de defesa dos particulares devido à transferências das questões delituosas para a esfera administrativa;
2)   tendência para a banalização das actuações delituais;
3)   tendência para a transformação da sanção pecuniária num custo da actividade económica poluente que pode tornar proveitoso um crime ambiental.

Pergunta-se: esta via pode ser uma alternativa à tutela penal do ambiente quando se visa reprimir comportamentos menos gravosos, mas ofensivos da legalidade ambiental? Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva as sanções penais com as sanções de natureza administrativa devem ser combinadas, de forma equilibrada.

Lei 50/2006 de 29 de Agosto
Origem
O direito contra-ordenacional intensificou a sua actividade, alargando o seu âmbito de actuação a todas as áreas da actividade económica, incluindo o ambiente.
A Lei 50/2006, de 29 de Agosto, teve origem na proposta de lei 20/X do XVII Governo Constitucional. A aprovação desta proposta permitiu adaptar e conformar os diplomas de matéria ambiental com as novas exigências.
O motivo para a elaboração de um regime das contra-ordenações ambientais residia na necessidade de unificação das múltiplas previsões pulverizadas pelas miríades de diplomas. Deste modo, assumia-se a necessidade de unidade da ordem jurídica devido ao crescimento de uma consciência ambiental colectiva.

           O regime
O n.º1 do artigo 1.º indica que esta lei estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais. 
Já o artigo 1.º/2 define a contra-ordenação ambiental: “constitui contra-ordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima.” Existe alguma dificuldade na definição, no segmento “consagrem direitos”, já que não é fácil configurar situações contra-ordenacionais por violação de direitos individuais dos particulares, pois o direito do ambiente caracteriza-se pela defesa de interesses difusos, de natureza pública, cuja violação constitui o verdadeiro alicerce das contra-ordenações.
Além disso, desta definição também não consta a culpa como pressuposto de imputação, mas unicamente o carácter censurável do facto constitutivo.
A toda a conduta contra-ordenacional terá que lhe estar inerente a respectiva proibição legal.
Em conclusão, este artigo consagra o princípio da legalidade, o da tipicidade (nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege) e ainda o princípio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa).

De notar que o as contra-ordenações ambientais são reguladas por esta lei e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações (RGCO), tal como consta do artigo 2.º. Contudo, a LQCA é bem mais detalhada do que o RGCO e, por isso, a aplicação dos preceitos do RGCO cingir-se-á à fase judicial do processo. Os regimes do Código Penal, do Código de Processo Penal, do Código do Processo Civil e do Código do Procedimento Administrativo também serão aplicáveis.

O princípio da legalidade encontra consagração no artigo 3.º, uma vez que só pode ser punido como contra-ordenação ambiental o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática. Retrata o princípio da não retroactividade da lei sancionatória (previsto no artigo 1.º do Código Penal e 29.º/1 e 3 da Constituição).

O artigo 4.º não prevê a aplicação de lei posterior mais favorável ao arguido condenado por decisão definitiva e transitada em julgado, mas ainda não executada. Nuno Salazar Casanova e Cláudio Monteiro entendem que esta solução não parece ser de aplicar em sede de direito contra-ordenacional. Porém, deverá seguir-se o regime do RGCO e, por força do artigo 32.º do RGCO, no caso de a lei nova deixar de punir facto até ali punível, deverá adoptar-se o regime do Código Penal (artigo 2.º/2).

O momento e lugar da prática do facto encontram-se consagrados no artigo 6.º e 7.º respectivamente.

Quanto à responsabilidade pelas contra-ordenações, cabe averiguar o artigo 8.º.
A pessoa colectiva é um centro de imputação do ilícito contra-ordenacional, sendo responsável pelas contra-ordenações realizadas por toda e qualquer pessoa que com ela tenha conexão material e jurídica e cuja actuação seja manifestação do ente colectivo.
Carlos Adérito Teixeira, in Revista do Ministério Público n.º 85, fala da consagração do “agir juridicamente relevante” da pessoa colectiva: acção e vontade identificam-se com as manifestadas pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou meros trabalhadores que tenham, como já disse, uma conexão funcional e actuem no interesse e por conta desse ente.  Esse agir converte-se numa unidade de sentido social, passível de responsabilização desse ente.
O artigo 8.º/3 prevê a responsabilização dos titulares do órgão de administração das pessoas colectivas e entidades equiparadas, bem como os responsáveis pela direcção ou fiscalização de áreas de actividade em que seja praticada alguma contra-ordenação. Se estas entidades conhecerem ou devam conhecer a prática da infracção, incorrem na sanção prevista para o autor, especialmente atenuada, se não adoptarem as medidas adequadas para lhe pôr fim. Cessa o disposto se a pessoa colectiva provar que cumpriu todos os deveres de que era destinatária (art.º 8.º/4).
Há um dever de conhecimento. Todavia, as autoridades administrativas aplicadoras de coimas não podem ser tentadas a aplicar, burocrática ou automaticamente, coimas a todos aqueles titulares com a mera justificação do dever de conhecimento.
Não se pune a acção directa dos representantes da pessoa colectiva, mas apenas a omissão de dever que sobre eles recai de impedir a prática de infracção.
Contudo, o legislador não deixou de consagrar a acção de tais órgãos, integrando-os no conceito amplo de autores previsto no artigo 15.º.
A acção directa cairá no artigo 8.º/2. O agente só será responsabilizado pelas contra-ordenações que pratique se não agir em nome e por conta do ente colectivo e fora do exercício das suas funções.

De acordo com o artigo 9.º, as contra-ordenações são puníveis a título de dolo ou negligência.
O art.º 9.º/3 indica que o erro sobre elemento do tipo, sobre a proibição ou sobre o estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente exclui o dolo.

É necessário dizer ainda que a tentativa é punível nas contra-ordenações graves e muito graves, segundo o artigo 10.º.

O artigo 11.º trata da responsabilidade subsidiária. Não deve ser feita uma interpretação literal deste artigo já que a mesma conduziria à responsabilização de todos os sócios, gerentes ou administradores por actos praticados por qualquer pessoa singular em representação da pessoa colectiva, de acordo com o artigo 8.º/1. Logo, a referência a “respectivos” sócios, gerentes ou administrativos deve ser entendida como prevendo a responsabilidade solidária, pelo pagamento da coima aplicada à pessoa colectiva, do agente individual que tenha actuado em seu nome e representação, culposamente.

O erro sobre a ilicitude consta do artigo 12.º, sendo que age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável. Caso o erro lhe seja censurável, aplica-se o n.º2 e há uma atenuação da coima.

O artigo 18.º indica que as autoridades administrativas, no exercício das suas funções inspectivas, de fiscalização ou vigilância, têm entrada livre nos estabelecimentos e locais onde se exerçam as actividades a inspeccionar.
O RGCO determina que não é permitida a prisão preventiva, a intromissão na correspondência ou nos meios de comunicação nem a utilização de provas que impliquem a violação do segredo profissional (artigo 42.º/1 RGCO). Também não são permitidas as provas que colidam com a reserva da vida privada, bem como os exames corporais e prova de sangue, se não forem consentidas de quem de direito.
Também não é possível proceder a exames de pessoas e lugares de acesso reservado (artigo 171.º CPP), revistas e buscas (art.º 174.º CPP). As apreensões estão previstas no artigo 48.º- A do RGCO e 178.º CPP.
A entrada em casa habitada, nos termos do artigo 177.º/1 do CPP, também não é permitida.
O artigo 18.º/2 da LQCO indica que os responsáveis pelos espaços também têm de apresentar documentos se lhes forem exigidos. Esta obrigação abrange correspondência (artigo 42.º do RGCO e 179.º do CPP), documentos abrangidos pelo segredo profissional (180.º/2 CPP), entre outros.

Além deste direito, podem ainda determinar o embargo de quaisquer construções em áreas de ocupação proibida ou condicionada em zonas de protecção estabelecidas por lei ou em contravenção à lei, aos regulamentos ou às condições de licenciamento ou autorização (artigo 19.º LQCO). Este preceito tem natureza puramente administrativa e deve ser pautado pelo princípio da igualdade, proporcionalidade e boa fé.
Nuno Salazar Casanova e Cláudio Monteiro indicam que a inclusão deste preceito na LQCO deve-se à confusão entre medidas de tutela da legalidade e ilícitos de mera ordenação social, já que o embargo visa reintegrar a legalidade e distingue-se, na sua natureza, das sanções contra-ordenacionais.

O título III consagra as coimas (que se classificam em leves, graves e muito graves) e sanções acessórias.
O artigo 20.º determina a medida de coima com base na gravidade da contra-ordenação, na culpa do agente e na situação económica do mesmo e nos  benefícios obtidos com a prática do facto. Podem ainda ser tomadas em conta a conduta anterior e posterior do agente, bem com as exigências de prevenção.
A coacção, falsificação e falsas declarações, simulação ou outro meio fraudulento que possa ser utilizado pelo agente, bem como actos de ocultação ou dissimulação podem ser atendíveis.

O artigo 22.º diz respeito ao montante das coimas. Parece estar pensado para as grandes organizações industriais e empresariais que controlam e dominam, olvidando-se das pequenas empresas sem capacidade económica para suportar elevados montantes.

O artigo 24.º estabelece que se a contra-ordenação consistir na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infractor do seu cumprimento se este ainda for possível.

Outro preceito inovador da LQCA, nomeadamente o artigo 25.º, prevê como ilícito contra-ordenacional o incumprimento de ordens ou mandados legítimos da autoridade administrativa transmitidos por escrito aos seus destinatários.

Já o artigo 28.º tem especial relevância. Consagra o concurso de infracções, ou seja, se o mesmo facto constituir crime e contra-ordenação, simultaneamente. Deve o arguido ser responsabilizado por ambas as infracções, instaurando-se processos distintos.

As sanções acessórias estão previstas nos artigos 29.º e seguintes. O catálogo destas sanções está previsto no artigo 30.º e os seus pressupostos no artigo 31.º. A alínea j) do artigo 30.º/1 tem uma estatuição genérica e, por isso, as autoridades devem escolher e fundamentar as medidas. Já a alínea b), conjugada com o artigo 32.º, consagra a sanção acessória mais severa que exige uma redobrada cautela das autoridades. Assim, é necessário fundamentar, em termos de razoabilidade e proporcionalidade, sob pena do despacho poder ser impugnado por falta ou insuficiência de fundamentação  e da medida ser declarada nula.
A acessoriedade duma qualquer sanção relativamente à penalização principal pressupõe adequação e complementaridade entre elas.
É possível a suspensão da sanção nos termos do artigo 39.º. O legislador não impõe à autoridade administrativa quaisquer condições, já que esta tem o domínio da situação concreta para decidir com total equidade.

A parte II estabelece o regime adjectivo das contra-ordenações ambientais.
As medidas cautelares estão enunciadas nos artigos 41.º e ss. Devem-se aplicar com prudência, já que qualquer abuso poderá acarretar responsabilidade civil.
Nuno Salazar Casanova e Cláudio Monteiro defendem que “a admissão, à semelhança do que sucede nas sanções acessórias, de medidas cautelares que se mostrem adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infracção e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma é de legalidade e constitucionalidade duvidosa.”1

Também é possível a apreensão cautelar, segundo o artigo 42.º.

O regime das notificações está previsto no artigo 43.º. Esta são efectuadas por carta registada, com aviso de recepção.

Quanto ao processamento, caberá seguir os artigos 45.º e seguintes. O auto de notícia consta do artigo 45.º e deve conter os elementos enunciados no artigo 46.º/1.

A instrução encontra-se prevista no artigo 48.º.

Fundamental é o direito de audiência e defesa do arguido que consta do artigo 49.º. Este preceito vem consagrar a obrigação de a entidade instrutora notificar o arguido sobre o sentido provável da decisão.

Em conclusão, o direito contra-ordenacional nasceu em Portugal, inspirado pelo modelo alemão das ordnungswidrigkeiten, por via do Decreto-Lei n.o 232/79, de 24 de Julho.

 A via penal e contra-ordenacional devem ser vistas como complementares, revelando-se imprescindíveis para assegurar a prevenção geral e especial. Às infracções mais graves deverá corresponder a tutela penal (tem sempre como pressuposto um dano ecológico) e às menos graves a contra-ordenacional.
A lei quadro assenta em princípios sólidos e apresenta uma tramitação para os processos de contra-ordenação ambiental adaptada à sua especificidade.

[1] - In comentários à lei-quadro das contra-ordenações ambientais, Actualidad Jurídica Uría Menéndez / 16-2007


Bibliografia
- GOMES, Carla Amado, As contra-ordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006, de 29 de Agosto: considerações gerais e observações tópicas, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Coimbra, 2012;

- NOGUEIRA, Lourenço, Comentário à Lei-quadro das contra-ordenações ambientais, in Revista Portuguesa do Direito do Consumo, nº 57, Coimbra, 2009;

- SILVA, Vasco Pereira da – Breve nota sobre o direito sancionatório do ambiente, in Direito Sancionatório das autoridades reguladoras, coord. Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias, Paulo Sousa Mendes, Coimbra Editora, 2009.

Outros elementos:
http://www.uria.com/documentos/publicaciones/1740/documento/art04.pdf?id=2137

Mónica Pita, n.º 20616







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