Aquilo
que me proponho analisar nesta exposição, não é propriamente a estrutura dos
tipos de crime ambientais (sua configuração como crimes de dano, crimes de
perigo, crimes de desobediência, etc.)[1] e
o estudo dos respetivos pressupostos sob o ponto de vista do Direito Penal. Sendo o
Direito do Ambiente, sobretudo, Direito Administrativo Especial, penso ser
legítimo e recomendável que se deixem os aspetos da análise dos tipos de crime e
seus elementos e pressupostos aos penalistas que, apesar de certamente tomarem
em conta as especificidades do Direito do Ambiente, terão as suas estratégias
próprias para analisar este tipo de crime, como fazem com todos os outros.
Tampouco irei discorrer acerca das relações entre Direito Penal e Direito
Administrativo[2],
da existência ou não de subsidiariedade nas relações entre os dois ramos, nem
mesmo, especificamente, sobre o conteúdo do bem jurídico a proteger[3],
discutindo se estaria em causa uma aceção ampla ou restrita do conceito de
ambiente, se será correto considera-lo, a nível penal, como valor em si mesmo
ou num sentido utilitarista face à atividade humana - esses são temas que
merecem tratamento específico e detalhado noutras sedes, - e muito menos
abordar o clássico tema das dificuldades de incriminação da pessoa coletiva[4]
que hoje se remete praticamente a um apontamento histórico. Os trâmites
processuais[5]
dos processos criminais ambientais também não serão alvo de análise aprofundada.
O
que aqui pretendo é, antes, tentar perceber se o bem jurídico Ambiente é digno
de tutela penal[6],
ou seja, se existem comportamentos agressores do ambiente de gravidade tal que
justifiquem uma intervenção do Direito Penal[7] ou
se será, porventura, suficiente, a tutela conferida por outros ramos do
Direito. Para isso, procurar-se-á, entre outros aspetos, perceber se a tutela
penal deste bem jurídico[8] é
útil (se serve algum escopo válido e premente) e eficaz (se, uma vez acionada, atinge os
objetivos a que se propunha).
Foi
em 1995[9]
que o Direito Penal despertou para a tutela do Ambiente, quando, na revisão
operada nesse ano, se introduziu a criminalização de alguns comportamentos
ambientalmente reprováveis, com a criação dos artigos 278.º (crime de danos
contra a natureza) e 279.º (crime de poluição) do Código Penal. Ao contrário do
que sucedia até então, o ambiente passa a ser tutelado como valor em si mesmo,
independentemente da existência de qualquer perigo ou lesão para bens pessoais ou
patrimoniais do homem.
A
consagração dos referidos artigos na altura em que foi levada a cabo, deve-se
essencialmente a duas ordens de motivos: por um lado, a “progressiva tomada de
consciência pela comunidade da gravidade da degradação ambiental, potenciada
pela crescente industrialização e sofisticação das condutas perigosas para o
equilíbrio ecológico, naquilo a que já se chamou uma «sociedade de risco»[10]
(…), [por outro, o facto de existir um] «modelo constitucional de Estado de
Direito Ambiental»: assim, tendo o legislador constitucional configurado o
direito ao ambiente como um direito fundamental autónomo e também como direito
social e económico que reclama prestações positivas das autoridades estaduais, fica
o legislador penal legitimado a criar crimes onde o bem jurídico protegido seja
o ambiente enquanto tal.”[11]
No
entanto, devemos ter em atenção que, como bem nota o Professor Gomes Canotilho,
“é de rejeitar a existência de imperativos constitucionais de criminalização,
porque a intervenção do direito penal não é necessária para evitar todas as
lesões de todos os valores com assento constitucional.”[12]
Não esqueçamos que o Direito Penal tem um fundamento de última ratio, pelo que só deve ser convocado
se se verificar essa necessidade e, ainda aí, se houver uma certeza razoável de
que a sua intervenção vai resultar eficaz na proteção do bem jurídico. Numa
palavra, a intervenção do Direito Penal “só é legítima se for eficaz na
protecção do bem jurídico.”[13]
Na
linha deste mesmo raciocínio, prossegue o Professos Gomes Canotilho dizendo que
“ao assumirmos que a intervenção do direito penal nas questões ambientais só
deve ocorrer se possuir um carácter de efectividade na defesa do bem jurídico,
rejeitamos aquilo a que se tem chamado direito penal simbólico. Transpondo esta
ideia para o domínio ambiental, pretende-se significar com direito penal
simbólico que a criação dos crimes ecológicos não corresponderá a uma efectiva
punição dos agentes poluidores, servindo apenas para sossegar consciências e
«atirar areia para os olhos da opinião pública», desviando assim a atenção das
medidas que politicamente deveriam ter sido tomadas, mas que não o foram por
economicamente custosas, difíceis ou impopulares.”[14]
Em suma, se a criminalização de uma conduta tiver apenas como intuito a
intimidação pela cominação de penas que só serão aplicadas a título de exemplo
e em casos excecionais, falhará a finalidade de prevenção que cabe às normas
penais. “A comunidade deixará de acreditar na vigência das normas que protegem
o ambiente por se aperceber da sua não efectividade, do seu carácter meramente
pragmático ou de intenções.”[15]
Esta
é uma das abordagens ao problema: a existir Direito Penal do Ambiente, ele tem
de ser efetivo para que possa cumprir plenamente a sua função. Mas, a montante,
encontra-se ainda um problema prévio: como decide o legislador que condutas
deve incriminar? É verdade que a Constituição da República Portuguesa lhe
permite e até – quem sabe – o incentiva a incriminar condutas lesivas do
ambiente, mas perante a “margem de manobra” que lhe é deixada, como decidir se
e quais os comportamentos com dignidade penal?
A
Professora Maria Fernanda Palma[16]
propõe os seguintes critérios legitimadores da decisão de incriminação
(basicamente, trata-se de critérios reveladores da possibilidade de um consenso
social amplo[17],
pois é isto que, em última instância, na opinião da autora, legitima a
intervenção penal):
1) Necessidade
de proteção do bem jurídico
Temos
que estar perante um bem carente de tutela penal, ou seja, um bem que
corresponda a um interesse não meramente simbólico ou ideal dos indivíduos ou
da sociedade, antes se repercutindo em algo distinto da mera coesão ideológica
(exemplo: para a autora, a crueldade contra animais ainda não atingiu valores
éticos suficientemente enraizados na comunidade ao ponto de corresponderem a
bens substanciais, a condições primárias do “contrato social”, talvez um dia –
digo eu – atinjamos esse grau de desenvolvimento humano e o façamos refletir na
tutela penal).
2) Prévio
relevo ético das condutas incriminadas
Na
sequência do que acaba de ser dito, o Direito Penal só poderá intervir onde
seja indiscutível (e consensual) a censura social do comportamento, por ser um
Direito Penal da culpa.
3) Não
contradição axiológica com outras soluções do sistema
Melhor
se compreenderá este pressuposto através da sua ilustração por meio de
exemplos: é aparentemente contraditório ou valorativamente inconsistente – na
opinião da Professora, não na minha - que se incrimine o comércio ou a detenção
de certas espécies de animais perante a não proibição de manipulação de
embriões humanos em experiências ou para fins curativos, assim como a
penalização do desperdício doméstico numa sociedade eminentemente consumista.
4) Necessidade
de um amplo consenso sobre a dignidade punitiva
Se
bem que este requisito, especialmente em sociedades com um grau de
desenvolvimento pouco elevado – que são geralmente e precisamente aquelas que
mais necessitam de regras ambientais, designadamente penais – é bastante
discutível, na minha opinião.
5) Ineficácia
de outros meios para levar a cabo a proteção do bem jurídico
Ora,
é precisamente perante este requisito, que tem vindo a ser sugerido desde o
início da exposição, que radicam as maiores dúvidas da doutrina acerca da
necessidade de convocação do Direito Penal para o domínio das infrações
ambientais. Este princípio é, como bem nota a Professora e com a qual concordo
absolutamente, condição legitimadora irrenunciável, verdadeira manifestação da
necessidade da pena e do princípio da adequação.
Chegados
a este ponto, é preciso estudar as alternativas possíveis – aquelas com que
obteríamos o mesmo objetivo, sem que fosse necessário convocar uma tutela tão
“pesada” como a penal – para dar resposta a muitas das infrações ambientais a
que assistimos. Como bem nota a Professora, “a este nível levanta-se,
sobretudo, a questão de saber se o Direito de Mera Ordenação Social não é a
solução mais idónea, nesta fase, para as infracções anti-ambientais.”[18]
Neste
aspeto, concordo com a autora – desde que até um certo ponto, ou seja, não
cobrindo toda e qualquer infração ambiental, já que algumas, pelas suas
características, designadamente as que envolvam dolo do tipo e culpa, devem, a
meu ver, continuar a merecer sanção penal - quando diz que “pelos meios
sancionatórios que oferece (sobretudo ao nível das sanções acessórias) e por
não ser seu critério predominante de fim e medida da sanção a culpa, mas antes
a reparação do dano e a desmotivação do infractor através do prejuízo
pecuniário causado pela sanção, este ramo do Direito [o de Mera Ordenação
Social] oferece mecanismos ideais relativamente a condutas anti-ambientais, não
imediatamente anti-humanas ou só remotamente perigosas para os bens jurídicos
pessoais ou sociais.”[19]
No
mesmo sentido vai o Professor Gomes Canotilho[20],
ao classificar como “hirpercriminalização” o fenómeno a que se tem vindo a
assistir, do alargamento do Direito Penal a áreas para as quais não fora
inicialmente pensado. O Professor defende que, as condutas axiologicamente
neutras devem ser encaradas como contra-ordenações (relacionadas com o Direito
de Mera Ordenação Social, cuja sanção é a coima) em vez de crimes (associadas
ao Direito Penal, cuja sanção é a pena privativa da liberdade ou a multa)[21],
dado que, como o Direito de Mera Ordenação Social se configura como Direito
Administrativo de caráter Sancionatório, a contra-ordenação deve referir-se a
condutas que só adquirem relevo depois de a Administração as eleger como
comportamentos a adotar ou a evitar. Por este motivo, para o Professor, o
Ambiente é uma das áreas destinatárias, por excelência, do Direito de Mera
Ordenação Social, apoiando-se, para tal afirmação, no art. 47.º n.º 1 da Lei de
Bases do Ambiente quando estabelece que a sanção regra para a punição das
infrações à legislação ambiental é a coima.
Num
balanço entre o pensamento dos dois autores, posso dizer que, na minha opinião,
o alargamento do Direito Penal a áreas para as quais não foi, inicialmente,
concebido, não tem, em si, nada de indesejável. A meu ver, a dita
“hipercriminalização” não dependerá disso, mas antes de tipificar crimes de
forma tão lata e abrangente que, aqui sim, na fase da técnica legislativa
utilizada, se corra o risco de incluir condutas cuja repressão pode ser levada
a cabo por outros meios suficientes e até, talvez, mais eficazes para
prosseguir o escopo da proteção ambiental. Concordaria a cem por cento com a
Professora Maria Fernanda Palma se, a propósito da parte final do último
excerto que transcrevi sobre o seu raciocínio, concretizasse em termos de
elementos do crime, a maneira como consideram que estariam preenchidos, para que
a concuta se revelasse “anti-humana”. Penso que, neste aspeto, a experiência
prática ajudará a aperfeiçoar a técnica legislativa e que, à medida que a
sociedade for evoluindo, o legislador irá perceber, com maior clareza, quais são as
condutas que necessitam, impreterivelmente, de um regime penal e quais as que se
bastam com a vigilância do Direito de Mera Ordenação Social ou até de outros
ramos jurídicos.
Assim,
a minha opinião nesta matéria vai muito ao encontro à do Professor Vasco Pereira da Silva[22]
que, depois de oferecer uma panóplia de argumentos tanto no sentido do
privilegiamento da tutela sancionatória do ambiente pela via penal, como pela
via administrativa, acaba por concluir que “a via mais indicada para a tutela
sancionatória do ambiente não dispensa a criminalização das condutas mais
graves de lesão do ambiente, já que a defesa do ambiente é parte integrante dos
valores fundamentais das sociedades em que vivemos e corresponde a (renovadas)
exigências de realização da dignidade da pessoa humana, mas sem que isso
signifique a banalização do Direito Penal do Ambiente, pois o modo “normal” de
reacção contra delitos ambientais deve ser antes o das sanções administrativas
ou contra-ordenações.”[23]
Bibliografia
citada e consultada:
·
CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução
ao Direito do Ambiente, Lisboa, Universidade Aberta, 1998;
·
DIAS, Augusto Silva, Ramos Emergentes
do Direito Penal relacionados com a Protecção do Futuro (Ambiente, Consumo e
Genética Humana), Coimbra, Coimbra Editora, 2008
·
DIAS, Jorge de Figueiredo, Sobre o
papel do Direito Penal na protecção do ambiente, in Revista de Direito e
Economia, n.º 1, Janeiro/Junho, 1978;
·
FARIA, Paula Ribeiro de, Do Direito
Penal do Ambiente e da sua Reforma, in Revista do CEJ, n.º 8, 1.º
semestre, 2008;
·
GOMES, Carla Amado, Introdução ao
Direito do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2012;
·
GOMES, Carla Amado, As contraordenações
ambientais no quadro da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto: considerações gerais
e observações tópicas, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, I,
Coimbra, Almedina, 2012;
·
MENDES, Paulo de Sousa, Vale a Pena o
Direito Penal do Ambiente, Lisboa, AAFDL, 2000;
·
OLIVEIRA, Heloísa, Eficácia e
Adequação na tutela sancionatória de bens ambientais, in Revista de
Concorrência e Regulação, ano 2, n.º 5 (Janeiro-Março), 2011;
·
PALMA, Maria Fernanda, Acerca do
estado actual do Direito Penal do Ambiente, in O Direito, ano 136.º,
I, 2004;
·
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal
do Ambiente: uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente (coord.
Freitas do Amaral/Marta Tavares de Almeida), Lisboa, INA, 1994;
·
SILVA, Germano Marques da Silva, A
Tutela Penal do Ambiente, in Estudos de Direito do Ambiente, Porto,
UCP, 2003;
·
SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de
Direito – Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002;
·
SILVA, Vasco Pereira da, Breve Nota
sobre o Direito Sancionatório do Ambiente, in Direito Sancionatório das
Autoridades Reguladoras, Coimbra, Coimbra Editora, 2009.
Inês
Coimbra Ribeiro,
N.º
20648
[1] Sobre isto, CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, pp.
157 e ss. e PALMA, Maria Fernanda, Direito
Penal do Ambiente: uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, pp.
439 e ss.
[2] Acerca deste assunto, PALMA, Maria Fernanda, Direito
Penal do Ambiente: uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, pp. 431 e ss.
[3] A propósito deste tema, PALMA, Maria Fernanda, Direito
Penal do Ambiente: uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente,
pp. 433 e ss.
[4] Para mais detalhes sobre este
assunto, no âmbito da redação anterior do art. 11.º do Código Penal, CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, pp.
155 e 156.
[5] Sobre isto CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, pp.
159 e ss. e OLIVEIRA, Heloísa, Eficácia e
Adequação na tutela sancionatória de bens ambientais, in Revista de
Concorrência e Regulação p.219 e
ss.
[6] Para um maior aprofundamento das
finalidades próprias do Direito Penal, OLIVEIRA, Heloísa, Eficácia e Adequação na tutela
sancionatória de bens ambientais, in Revista de Concorrência e Regulação, pp. 212 e ss.
[7] Acerca disto, DIAS, Augusto Silva, Ramos
Emergentes do Direito Penal relacionados com a Protecção do Futuro (Ambiente,
Consumo e Genética Humana), pp. 85 e 86.
[8] Sobre o bem jurídico tutelado
pelo crime ecológico, SILVA, Germano Marques da Silva, A
Tutela Penal do Ambiente, in Estudos de Direito do Ambiente, p. 12.
[9] Acerca deste apontamento
histórico, CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, p.
153; SILVA, Vasco Pereira da, Verde
Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, p. 275 e DIAS,
Augusto Silva, Ramos Emergentes do Direito Penal relacionados com a
Protecção do Futuro (Ambiente, Consumo e Genética Humana), pp. 77 e ss.
[10] Sobre o conceito de sociedade de
risco, MENDES, Paulo de Sousa, Vale a
Pena o Direito Penal do Ambiente,
pp. 39 e ss.
[16] PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal do Ambiente:
uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, pp. 436 e ss.
[17] Neste sentido também SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor
de Direito – Lições de Direito do Ambiente, p. 276, ao dizer que “o Direito Penal não deve ser banalizado, antes
reservado para as situações em que estão em causa os valores fundamentais da
sociedade, ou o ‘mínimo ético comum’ da comunidade, ou as regras primordiais constitutivas
do ‘pacto social’”.
[18] PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal do Ambiente:
uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, p. 438.
[19] PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal do Ambiente:
uma primeira abordagem, in Direito do Ambiente, p. 438.
[21] Para um maior aprofundamento
sobre a distinção entre estes dois ramos de direito e respetivos instrumentos
sancionatórios, CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, pp.
179 e ss.
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